
O título – por não anunciar novidade – pode levar ao desinteresse pelas linhas que se seguem mas, apesar de não haver novidade, é precisamente essa ausência de novidade que é importante sublinhar porque contraria a expectativa de quem esperava grandes mudanças com a eleição de Joe Biden para a Casa Branca. O caso dos submarinos, entre a França e a Austrália, veio provar que a diferença entre Joe Biden e Donald Trump pode estar afinal apenas no espalhafate que um fazia e que o outro dispensa. Trump, preferia o palco; Biden, prefere os bastidores.
Paris espumou de indignação quando a Austrália anunciou que afinal já não quer os submarinos franceses, mas sim submarinos made in USA. O contrato estava assinado mas a Austrália rasgou-o sem avisar, ao mesmo tempo que era anunciada a AUKUS, a Aliança estratégica e militar entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, com o objetivo de conter a China na região da Ásia-Pacífico. O problema é que Austrália e França são países aliados, tal como Reino Unido e Estados Unidos. E afinal, é hábito e é norma, os países aliados conversarem e não apresentarem factos consumados em matéria de geopolítica. Se foi apenas isso – contrato rasgado sem aviso prévio – o Governo francês está carregado de razão. Um dos pilares da relação entre os Estados é a confiança. O velhíssimo pilar das relações internacionais (e não só), Pacta Sun Servanda (em tradução livre “os contratos são para cumprir”), foi completamente ignorado por Camberra, obviamente com o apoio dos Estados Unidos e do Reino Unido.
Para além dos muitos milhões de euros que estão em causa, a questão política é muito mais importante. A relação entre os dois países fica comprometida porque a confiança foi quebrada. E a relação entre a França e os Estados Unidos não fica melhor. O Primeiro-ministro australiano diz que é o interesse nacional que está em causa; Joe Biden tem telefonema marcado com Emmanuel Macron. Nunca se sabe o coelho que a diplomacia pode tirar da cartola, mas a França falou grosso e parece estar genuinamente zangada. Certo é que longe vão os tempos em que Emmanuel Macron foi o primeiro dirigente da União Europeia a conversar ao telefone com o então recém-eleito Presidente dos Estados Unidos. Desta vez, nem telefonema houve.
O imaginário do Império
Mas este caso é também a Commonwealth a funcionar: a jangada de pedra do Reino Unido afasta-se cada vez mais da Europa; os Estados Unidos alimentam a indústria de armamento e até dispensam bem – se for necessário – uma União Europeia a 27, indecisa e lenta, e preferem um aliado forte em Londres (são velhos conhecidos), sempre disposto à asneira como foi o caso das guerras no Iraque e no Afeganistão; a Austrália, cuja Constituição reconhece a Rainha de Inglaterra como chefe de Estado, não tinha outra escolha, a não ser preferir uma aliança com Estados Unidos – incluindo presença militar norte-americana em território australiano – e Reino Unido, mesmo que isso obrigue a rasgar um contrato, sendo que aquilo que a Austrália precisava desse contrato pode ser fornecido por um dos membros da nova Aliança, quiçá ainda de melhor qualidade.
Na AUKUS há ainda a vantagem de todos falarem a mesma língua. Para além disso, Londres parece nunca ter abandonado a ideia do Império Britânico, embora desta vez em versão “Global Britain”, expressão muito querida a Boris Johnson quando fala da região do Indo-Pacífico (Austrália Nova Zelândia).
E agora, Paris?
O protesto francês levou à chamada dos embaixadores em Washington e Camberra. O Ministro da Europa e dos Negócios Estrangeiros francês foi assertivo como raramente acontece em termos internacionais. Jean-Yves Le Drian falou de uma “mentira”, referiu uma “grande quebra de confiança” e a existência de uma “crise grave”, e avisou que este acontecimento terá consequências no novo conceito estratégico da NATO.
Faltando ainda saber o que fará a França, parece certo que terá de fazer alguma coisa. Há eleições Presidenciais em Abril de 2022 e Emmanuel Macron pode mostrar tudo menos fraqueza.
União Europeia. Será desta?
Para já, a União Europeia defende a França e envia recados para o outro lado do Atlântico, apesar de nem todos os 27 fazerem a mesma leitura.
A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen considerou “inaceitável” a forma como a França foi tratada (por países aliados) e o Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, referiu a “deslealdade” dos Estados Unidos. Palavras fortes e pouco habituais.
Na União Europeia, face à atitude dos Estados Unidos e do Reino Unido, crescem as vozes para que os 27 construam uma autonomia estratégica e de defesa. A questão é antiga, mas pode ser o momento de dar passos em frente. E se assim for, a França está bem posicionada. A partir de Janeiro a França preside ao Conselho da União Europeia. Muitos europeus, depois da caótica retirada do Afeganistão – decidida sem consulta prévia aos aliados – e deste caso a envolver a França, dão sinais de cansaço das opções de Washington.
Por agora, Macron aponta para a Índia, actor importante na região do Indo-Pacífico. Depois de uma conversa telefónica com o Primeiro-ministro indiano Narendra Modi, o Eliseu fez saber que a França pretende “ajudar a fortalecer a autonomia estratégica da Índia, incluindo a sua base industrial e tecnológica”. A Índia já é um parceiro militar importante da França.
A anarquia do sistema internacional
Entre toda a confusão e gritaria que o AUKUS veio provocar, razão tinham os que sempre disseram que a anarquia é própria da política internacional. Os Estados operam numa lógica de anarquia em que, como disse Kenneth Waltz, os Estados “são agentes unitários que, no mínimo, procuram preservar a sua sobrevivência e, no máximo, almejam o domínio mundial”.
Por mais Tratados, Acordos e contratos que se façam, há-de haver sempre alguém que vai roer a corda. A cada momento prevalece o interesse nacional de cada Estado. Não adianta ter ilusões. Foi isso que Joe Biden fez e é isso que Emmanuel Macron faz: defendem os respectivos interesses nacionais. Nada de novo.
Mas, neste caso do contrato dos submarinos, de uma coisa o Governo francês não se livra: foi o último a saber. E isso, ninguém gosta. É uma questão de honra.