Eleições no Iraque e o que os votos não podem resolver

Uma mulher iraquiana mostra o dedo “pintado” como sinal de que votou nas eleições de 12 de Maio de 2018. Foto: fornecida pelo governo iraquiano e publicada em https://diyaruna.com

O Iraque tem eleições legislativas (antecipadas) neste domingo, 10 de Outubro. É uma tentação grande – após quase 20 anos de guerras e conflitos – esperar que os resultados eleitorais permitam que alguma coisa mude nas instituições políticas iraquianas, mas talvez seja esperar o impossível.

Desde o Outono de 2019 que os iraquianos saíram à rua, principalmente no sul e na capital. Fazendo lembrar a palavra de ordem da Primavera Árabe, o povo pediu “a queda do regime”. Manifestações contra a corrupção endémica, a inoperância dos serviços públicos (saúde, energia eléctrica, fornecimento de água…) e o desemprego jovem que ronda os 40%; os manifestantes apontam o dedo ao Irão acusando o país vizinho de ser o arquitecto do sistema político que provocou a actual miséria. Apontam também o dedo ao poder das milícias (xiitas) pró-iranianas que ajudaram no combate à organização Estado Islâmico e que assumiram um papel principal na política iraquiana. Ninguém percebe que um país com uma enorme riqueza de petróleo seja dependente da electricidade que chega do Irão ou que não haja criação de emprego e desenvolvimento económico.

A repressão sangrenta que respondeu à revolta exacerbou o protesto. Os dados conhecidos apontam para cerca de 600 feridos e mais de 30.000 feridos. Uma característica a sublinhar nesta revolta: acontece em regiões de maioria xiita, precisamente a que governa o país desde a queda de Saddam Husseín. Os manifestantes exigiram mudança de governo, uma nova lei eleitoral e a criação de uma Comissão Eleitoral Independente.

As divisões políticas e religiosas

Se a revolta permitiu evidenciar um campo xiita dividido – já assim era, mas agora com um número considerável da população xiita a rejeitar os políticos xiitas que têm governado o país – o Iraque tem também uma “questão sunita” por resolver e a solução para essa questão não passa por sucessivas eleições, que podem traduzir-se em pequenas alterações e em alguma mudança de protagonistas, mas, no essencial, com a maioria xiita a governar – se for o caso – as políticas permanecem as mesmas. Desde que Saddam caiu, os sunitas foram afastados de tudo o que é poder no Iraque e tem sido isso a alimentar as sucessivas ondas de violência no país. Sejam os anos terríveis da Al Qaeda e das batalhas no “triângulo sunita”, seja o próprio Estado Islâmico que contou com muitos militares de alta patente do tempo de Saddam Husseín, a “questão sunita” só não é perceptível a quem quiser fechar os olhos.

Longe vão os tempos de Paul Bremer, nomeado governador provisório do Iraque, por George W. Bush. Um tempo em que os invasores queriam que acreditássemos que seria possível fazer eleições semelhantes às que se fazem no Ocidente. Ficámos logo a saber que não era assim: no Iraque, os xiitas votam em partidos xiitas, os sunitas em partidos sunitas e os curdos em partidos curdos. Haverá excepções, mas apenas confirmam a regra. Talvez um dia mude, mas ainda não mudou.

É certo que há uma promessa de evitar a fraude eleitoral; é certo que o governo iraquiano diz que o material eleitoral foi impresso na Alemanha; é certo que o cartão de eleitor com dados biométricos dificulta a vigarice; é certo que as Nações Unidas e a União Europeia vão ter observadores nas 19 províncias iraquianas. No entanto, a nova Comissão Eleitoral é composta por 9 magistrados designados pelos partidos que estão actualmente no Parlamento, precisamente a “dependência” que os manifestantes têm contestado.

Mudança ou continuidade?

Da decisão dos cerca de 25 milhões de eleitores iraquianos sairá o futuro do país. Há expectativa quanto à participação. Desde as eleições de 2005 que a participação tem vindo a baixar e em 2018 foi de 44,5%. Desta vez, um novo sistema eleitoral permite círculos uninominais e permite também candidatos independentes, mesmo que muitos deles estejam a ser criticados por serem apenas “testas de ferro” das forças políticas tradicionais. As mulheres têm uma quota de 25% dos lugares no Parlamento (83 em 329 lugares), garantida pela Constituição.

Do voto dos iraquianos se ficará a saber se o movimento de revolta popular vai ter alguma expressão nos resultados eleitorais, ou se tudo vai ficar mais ou menos na mesma, com os habituais partidos políticos a dominarem as instituições políticas.

A confirmar-se a tendência que se regista desde a queda de Saddam Husseín, os xiitas terão a maioria (qualquer que seja a aliança partidária necessária para apoiar um Governo), os curdos ficam com a sua quota de representação (mas têm a sua Região e Autonomia reconhecidas na Constituição – e na “ponta das espingardas”) e os sunitas vão continuar sem nada, mesmo que tenham alguns cargos para dar a ilusão de que têm poder. Enquanto o “problema sunita” não for resolvido, o Iraque não terá a desejada estabilidade, tal como não terá enquanto o Irão mantiver a pesada influência que tem no país. Esperar que as eleições resolvam estas questões afigura-se mera ilusão.

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