Quando Zelensky e Assad estão na mesma sala

Fotomontagem: eng.az24saat.org Azerbeijan News

Após 12 anos de guerra e depois de ter sido banido da Liga Árabe em finais de 2011, Bashar Al Assad, Presidente da Síria, voltou a sentar-se entre pares. Afinal, deve ter pensado Assad, valeu a pena. E a expressão “estar entre pares” assenta como uma luva à presença de Assad entre os 22 líderes da Liga Árabe, se considerarmos as características da maioria dos regimes, principalmente dos países com mais peso na organização.

Garanto que é assustador olhar para o céu e ver helicópteros às voltas, à procura do melhor sítio para largar barris com bombas. Foi assim uma parte da guerra de Assad contra a Resistência que queria mudar o regime, quando o Exército Livre da Síria (Free Syrian Army) ainda era uma esperança revolucionária. E foi Assad quem começou a guerra, ao enviar o exército contra as manifestações populares. Assad é um Presidente que utilizou o exército do país contra a própria população e tem nas mãos o sangue de muitos milhares de inocentes. Manteve-se no poder graças ao apoio da Rússia e do Irão. Em relação ao surgimento do Estado Islâmico divide responsabilidades com os Estados Unidos. Na mesa da Liga Árabe não é o único a ter um registo pouco recomendável.

A chamada de Assad para a mesa que reúne os líderes árabes, e a passagem de uma esponja sobre o passado, é um mau sinal, mas não surpreende, porque também o príncipe herdeiro do país que acolheu esta cimeira da Liga Árabe procura passar uma esponja sobre o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi do qual é considerado o principal responsável.

Aliás, Mohammed Bin Salmen (MBS) pretende que a Arábia Saudita seja o polo de um novo centro de poder regional, num mundo em permanente reajustamento, mas agora em reajustamento acelerado devido à guerra na Ucrânia. O mundo árabe até pode(ria) ter uma palavra a dizer na Ordem Internacional, mas enfrenta o problema de sempre: os líderes sempre estiveram mais preocupados em manter o seu próprio poder do que na construção de uma unidade que possa projectar a visão árabe para o mundo. Veja-se o caso dos Acordos de Abraão (com Israel), em relação aos quais estão profundamente divididos, o recente bloqueio ao Qatar ou ainda as guerras no Iémen e na Líbia.

Mas a recente cimeira da Liga Árabe (em Jeddah, na Arábia Saudita) teve ainda um participante surpresa: Volodimir Zelensky. O Presidente da Ucrânia, depois de um périplo europeu, foi a Jeddah tentar convencer os países árabes a apoiarem a Ucrânia e a deixarem a neutralidade que têm assumido, mantendo até relações próximas com a Rússia.

Aqui chegados, uma questão elementar e duas questões a reter. A questão elementar é que as duas personalidades (Assad e Zelensky) que captaram as atenções nesta Cimeira têm uma relação diametralmente oposta com a Rússia: enquanto as tropas russas invadem e atacam a Ucrânia, outras tropas russas são o principal suporte do poder de Bassar Al Assad na Síria. Depois, a presença de Zelensky ofuscou o regresso de Bashar Al Assad à mesa da família árabe e, algo muito importante para os países árabes, Zelensky cometeu um erro ao não fazer qualquer referência à questão da Palestina. Ora, um presidente que combate uma invasão e uma ocupação de território, e vai pedir apoio para esse combate, não pode ignorar que uma das causas árabes mais importantes é, precisamente, a ocupação de Israel nos territórios palestinianos.

Disto resulta que Zelensky e Assad ficaram ambos a perder e quem ficou a ganhar foi MBS. Depois de ainda recentemente ter aceitado reatar relações diplomáticas com o Irão (sob os auspícios da China…), o que implicou de imediato um apaziguamento na guerra do Iémen, MBS passou a imagem do grande anfitrião que conseguiu reunir árabes desavindos e permitiu que voz a Zelensky fosse ouvida, mesmo que isso não tenha qualquer resultado concreto.

Da presença de Zelensky nesta Cimeira Árabe dificilmente poderá resultar algo que ajude a alterar o curso da guerra na Ucrânia – aliás MBS reafirmou a neutralidade da Arábia Saudita, embora mantendo a disponibilidade para mediar o conflito.

A Cimeira Árabe (e MBS) disputou o mediatismo da presença de Zelensky em vários países europeus antes de chegar à Arábia Saudita, e do G7, para onde Zelensky seguiu depois da Arábia Saudita. Não é pouco e é mais um sinal de que a Ordem Internacional está a sofrer um reajustamento, mesmo que desse reajustamento não se saiba ao certo o que vai resultar. A Guerra Fria e o mundo bipolar há muito que terminaram, mas há quem teime em olhar (e dividir) o mundo dessa forma.

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