Se um dia os Curdos…

Fotografia de autor desconhecido. Surge frequentemente legendada como sendo o momento em que Qazi Muhammad’s, Presidente, anunciou a criação da República do Curdistão (República de Mahabad). Foi executado quando o Irão recuperou o poder no território. Qazi Muhammad’s foi ainda o fundador do Partido Democrático do Curdistão (ramo iraniano).

Admitamos que cerca de 35 milhões de pessoas a viverem numa parte da região do crescente Fértil – ali, onde outrora foi o Ocidente – divididas por quatro países, falando a mesma língua (com muitas nuances e dialectos, mas a mesma língua) podem ser um “problema” se um dia unirem força e vontade para rasgar fronteiras e construir o seu próprio país. Evidentemente que há um alto preço a pagar porque nenhum Estado cede território sem “estrebuchar” e resistir. Há ainda uma condição indispensável para que esse Curdistão possa algum dia ser uma realidade: apoio internacional. Nesse ponto, os Curdos sabem que não podem contar com ninguém. Há actores internacionais que apenas pretendem manter o status quo da região, mexendo as peças consoante a necessidade do momento e, por outro lado, alguns desses actores, sabem que contribuíram para a situação que os Curdos hoje enfrentam: são o maior grupo étnico, separado por diferentes fronteiras e sem direito a um Estado e à autogovernação. Quanto aos países com população Curda a primeira reacção é sempre esmagar qualquer sinal ou reivindicação de autonomia – não vá dar-se o caso de haver um “mau exemplo”. Por tudo isto, mas também porque estão espartilhados em quatro Estados, todos eles a viverem grande turbulência política e até uma situação de guerra, os Curdos ainda não conseguiram – ou não querem – convergir na acção e nos objetivos.

Iraque, Irão, Turquia e Síria

Os Curdos do Iraque são os únicos que conseguiram aproximar-se da autogovernação. Beneficiaram da zona de exclusão aérea, após a Guerra do Golfo e após a chacina de que foram alvo por parte de Saddam Husseín, em Halabja (1988), durante a guerra Irão-Iraque. A autogovernação curda no norte do Iraque consolidou-se após a invasão do Iraque em 2003 com a actual Constituição iraquiana a estabelecer um Estado Federal e a reconhecer um Governo Regional.

Na Síria, as forças Curdas controlam uma parte substancial nas regiões norte e este do país. Os territórios curdos estão divididos por cantões e, por agora, gozam de autonomia, embora não reconhecida pelo governo sírio. São estas regiões que a Turquia tem atacado nos últimos dias, com o argumento de que as forças Curdas na Síria são uma extensão do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão).

O PKK surgiu na Turquia (onde está a maior comunidade curda) precisamente com o objetivo de defender e lutar por direitos que a Turquia não reconhecia. O PKK, muito perseguido na Turquia, tem bases nas montanhas de Kandil, uma cordilheira em territórios curdos do Iraque e do Irão. É por isso que a Turquia também bombardeia território iraquiano e mantém bases militares no Iraque, ignorando os protestos do governo federal iraquiano. É também por isso que o Irão bombardeia algumas regiões curdas do Iraque: porque é aí que estão as bases recuadas dos partidos curdos do Irão.

Estamos perante uma situação que só não é mais explosiva, embora possa variar em função do país, porque os Estados envolvidos pretendem que este conflito com os curdos mantenha baixa intensidade. Por um lado, a Turquia mantém uma boa relação (principalmente económica) com o Governo Regional do Curdistão iraquiano; Por outro lado, o Irão pretende ter um governo aliado em Bagdad e também não quer avançar com uma escandalosa invasão ou bombardeamentos em larga escala do território federal iraquiano. Na Síria, o presidente Bashar Al Assad é aliado do Irão e também da Rússia, que por seu lado é um importantíssimo parceiro económico da Turquia. Já o Governo Regional do Curdistão sabe que não pode perseguir ou expulsar os combatentes do PKK. Os Curdos já viveram uma guerra civil e não a querem repetir. O Governo Regional sabe que o PKK tem um grande apoio popular, mesmo que apenas afectivo, e hostilizar demasiado a organização que Estados Unidos e União Europeia consideram terrorista, seria um erro, facilmente perceptível para quem está na região e conhece o sentir dos Curdos, mesmo que discorde do PKK.

O líder

O jornalista Graham Usher, um especialista em assuntos do Médio Oriente, escreveu que a Turquia devia perceber que poderia fazer com Abdullah Öcalan o mesmo que Israel fez com Arafat, que também considerava terrorista: um acordo de paz. Ou então sujeitar-se-ia a viver uma Intifada. Graham Usher escreveu o alerta em 1999, duas semanas depois dos serviços secretos norte-americanos e israelitas terem capturado Öcalan no Quénia para o entregarem à Turquia. Mais de 20 anos depois, o líder do PKK continua preso, mas é a sua fotografia que está, pelo menos, em muitas ruas na Síria e em muitas casas no Iraque.

A repressão turca e iraniana

Para além da questão de fundo – os direitos dos Curdos – Irão e Turquia utilizam os Curdos como arma de política interna para esconder os períodos críticos que atravessam. O Irão aponta para os Curdos e diz: aqui estão aqueles que estão ao serviço de Estados Unidos e Israel para desestabilizarem o nosso país; Teerão chegou a descrever os protestos como um movimento sunita com o apoio da Arábia Saudita para desestabilizar o Irão xiita. Já a Turquia aponta para os Curdos e diz: são eles os responsáveis pelo recente ataque terrorista em Istambul, são eles que desestabilizam o nosso país, ameaçam a segurança e a coesão nacional. O presidente Erdogan tem eleições presidenciais em Junho de 2023 e ter alguém a quem acusar de estar na origem dos problemas é uma ferramenta sempre útil a qualquer líder político.

Convém sublinhar que no caso do Irão, a actual onda de protestos e violência começou com a morte de Masha Amini, a jovem curda iraniana que teve a suprema ousadia de não usar um véu a cobrir o cabelo. É precisamente na zona curda do Irão (e também no extremo oposto, no Balochistão) que o governo de Teerão tem centralizado a repressão. É também aí que os protestos continuam com intensidade. E é bom não esquecer que foi nessa área que existiu, embora de forma efémera, a República (curda) de Mahabad, em 1946, cujo presidente foi executado logo que o Irão recuperou o poder no território.

No caso da Turquia, a mais recente acusação aos curdos (alegadamente responsáveis pelo atentado em Istambul) parece cair pela base, desde logo porque sempre que alguma organização curda cometeu/organizou um atentado, nunca esperou pela acusação, reivindicando-o de imediato; depois, porque o atentado de Istambul, numa zona civil, contra civis, nunca foi o “modus operandi” das organizações curdas. Para além disso, o comandante (curdo) das Forças Democráticas da Síria, Mazloum Abdi explicou que a suspeita detida pertence a uma família ligada à organização Estado Islâmico: três dos seus irmãos morreram a combater nas fileiras da organização. Um outro irmão comanda um grupo da oposição síria apoiado pela Turquia.

Escolhas difíceis

Os Curdos estão perante a sua própria encruzilhada, mas também perante os objetivos de diferentes poderes políticos que precisam de resolver problemas internos. Como se não fosse suficiente enfrentarem as naturais resistências à sua ambição enquanto povo, são também usados como inimigos úteis para objetivos políticos com os quais os Curdos nada têm a ver.

Será muito difícil – até uma coincidência altamente improvável – ver chegar o momento em que a situação política nos quatro países onde vivem os Curdos seja propícia a uma acção simultânea das comunidades curdas. Até lá, o que farão os Curdos? Cada comunidade por si própria ou será que vão à procura de uma estratégia comum que dê visibilidade e força à “questão curda”?

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