
Ou de um lado, ou do outro. Ninguém se aguenta em cima deste arame. Não é possível dizer que a situação de Direitos Humanos no Qatar é criticável e, simultaneamente, dizer que é um assunto que pode ficar em “banho-maria” enquanto a bola rolar no relvado, porque há jogos para ganhar. Os Direitos Humanos nunca podem estar suspensos. É a linha vermelha que não pode ser pisada.
Mas, há um grande “mas”, a atribuição da organização do Mundial de Futebol, foi em 2010. Das violações de Direitos Humanos já se sabia, dos trabalhadores que morreram na construção dos estádios fomos sabendo ao longo do tempo. Da corrupção também ficámos a saber mas, manda o dinheiro que gira em torno do futebol (e não apenas do futebol, no caso do Qatar), nem pensar em retirar ao Qatar a organização da competição. Houve tempo para isso, mas outros valores se levantaram.
Para sermos rigorosos, a atribuição de uma grande competição a um país que a não merece e que dela apenas pretende uma oportunidade para melhorar/limpar a imagem, é algo que tem muitos antecedentes e tem talvez como exemplos mais expressivos os Jogos Olímpicos na Alemanha, durante o regime nazi, e os recentes Jogos Olímpicos de Inverno, na China.
No caso do Qatar, a coisa passa por França. Os jornais têm feito eco da relação estabelecida entre o ex-Presidente Nicholas Sarkozy e Michel Platini (então presidente da UEFA), para que o Mundial fosse atribuir ao Qatar. No “negócio” entra também o PSG, actualmente presidido por Nasser al-Khelaïfi, que o site Mediapart descreve como o “monsieur Sport” do Emir do Qatar. As investigações estão a decorrer.
A corrupção, de que ninguém já tem dúvidas, atingiu a cúpula da FIFA com a organização a suspender Sepp Blatter (antigo presidente) por luvas recebidas aquando de Mundiais anteriores. Blatter e outros ex-dirigentes de topo da FIFA estão a braços com vários processos.
O futebol, já se viu, está transformado em actividade meramente mercantilista e é precisamente como o capitalismo: vive tranquilamente sem democracia. O dinheiro tudo paga. E parece que é um caso de win-win (todos ganham). Menos, claro, no caso do Qatar, os que morreram na construção dos estádios e os Direitos Humanos. Parece que tudo se pode fazer, menos levar camisolas para um estádio de futebol a denunciar o desrespeito pelos Direitos Humanos no Qatar. Isso é que não, poderia alguém ficar ofendido. Mas se fosse para manifestar apoio à Ucrânia não teria havido problema.
Aliás, é muito interessante aquele argumento de que a política não se deve misturar com o futebol, sendo que quem o utiliza parece querer dizer que o futebol é apenas um jogo/desporto. Uma coisa à parte, neutra. Não é. Nunca foi. O futebol é política, do princípio ao fim, principalmente quando fecha as bancadas a qualquer tipo de protesto com potencial para estragar o negócio. Ao fazer isso está também a tomar partido. É o futebol e é a cultura. Porque quando um artista dá um espectáculo em Israel está também ele a ajudar a “normalizar” políticas que desrespeitam os Direitos Humanos do povo palestiniano. As artes não são neutras, e o futebol também não.
Daniel Oliveira lembra no Expresso que a selecção da Rússia não está no Qatar por ter sido banida em nome dos “nossos valores”. E Sepp Blatter queria que o Irão ficasse de fora por causa da violação dos Direitos Humanos. Verdadeiro humor negro, como diz Daniel Oliveira.
Uma outra prova de que o futebol é apenas uma das actividades económicas integradas na política é a resposta que Pascal Boniface (fundador e director do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas – IRIS) dá, quando questionado sobre um eventual boicote ao Mundial do Qatar (citado de cor): Porque devemos boicotar o futebol e não o resto? Se o Qatar é um país não frequentável, não é por causa do futebol. Não podemos vender os (aviões caça) Rafale e os Airbus ao Qatar, não podemos comprar gás e petróleo ao Qatar, e depois boicotar o Mundial.
Ora aí está como as coisas funcionam. A chamada real-politik.
Em termos de liberdade de imprensa, o país ocupa o 119º lugar (era 128º em 2021) em 180, na classificação dos RSF (Repórteres Sem Fronteiras). Não há nota de jornalistas presos ou assassinados. Os RSF sublinham que apesar de ser o país da Al Jazeera, estação com impacto mundial, noticiar assuntos de política interna continua a ser um enorme desafio para os jornalistas.
Talvez os jornalistas consigam registar a opinião dos jogadores. Sim, gostaria de os ouvir. Devem ter opinião. E seria bom que não fossem vistos apenas como robots, que calçam umas botas de pitons e sabem para onde devem chutar a bola. Diz-se frequentemente que, enquanto figuras públicas, devem ser um exemplo para os jovens. Poderiam agora dar esse bom exemplo e mostrar que para além de saberem jogar à bola sabem pensar no outro. Que grande golo seria ver os craques da bola a defender os Direitos Humanos.
Estou convicto de que muitos dos que chegaram ao final deste texto, partilham da minha expectativa em relação a este Mundial. Não em relação ao vencedor, mas sim em relação a tudo o resto.