
A morte de Adriano Moreira provocou reacções extremadas relativamente ao legado de um século de vida. Há críticas ao homem que foi Ministro do Ultramar (com Salazar) e que reabriu o Campo do Tarrafal “apenas” como campo de prisioneiros para os guerrilheiros dos movimentos de libertação; há quem defenda o homem que deixou a pasta em desacordo com Salazar e que esteve preso no Aljube. Há quem enalteça o homem que serviu, depois, o regime democrático e a Academia. Adriano Moreira, foi tudo isto e muito mais. Um século de vida são muitos passos, muitas decisões, muitas encruzilhadas.
Há quem encontre justificação para algumas decisões de Adriano Moreira em função do contexto em que foram tomadas. Ora, há sempre um contexto! Não apenas quando convém à perspectiva que temos sobre determinado assunto. Veja-se o que acontece com a guerra na Ucrânia, onde o contexto é permanentemente desvalorizado, principalmente por quem está contra a Rússia.
Adriano Moreira esteve, várias vezes, do lado errado da história. É uma opinião. Poderemos dizer que esteve, no início, nas proximidades do lado certo, mas a participação num governo fascista carimba essa presença no lado errado de forma indelével.
Depois, quero acreditar que por convicção, prevaleceram uma atitude e um olhar humanistas.
Foi Adriano Morreira que escreveu que “a memória dos povos sobrevive à debilidade dos Tratados”. Uma simples frase que explica tanta coisa e que é frequentemente ignorada por políticos de todos os quadrantes. Lembrou Adriano Moreira que “a política de expansão da União (Europeia) e da sua autonomia defensiva acordou a memória da Rússia, cujo presidente certamente se lembrou de que a Igreja Russa, quando os turcos chegaram às portas de Viena, proclamou que a primeira Roma caíra, a segunda Roma (Constantinopla) caíra, mas que a terceira Roma (Rússia) não cairá, e proclamou-se império do Meio, coroado pela Águia Bicéfala e rodeado de Generais”. Lá está, outra vez o contexto, que tantos gostam de sublinhar quando lhes convém, mas que recusam quando é inconveniente.
Escreveu também que chegámos à actual anarquia mundial “talvez porque os paradigmas do mundo único e da casa comum dos homens, não deram lugar à convicção que Jean Monet, nas Memórias, confessou de que deveria ter começado pela cultura para unir a Europa e não pela economia”.
E ainda uma terceira referência sobre as reflexões de Adriano Moreira ao olhar este nosso mundo: “um mundo em que o credo do mercado substitui o valor das coisas pelo preço das coisas, com uma desordem global”. Eis o esplendor do neoliberalismo!
Não restam dúvidas quanto ao peso e ao legado intelectual de Adriano Moreira. Os livros publicados, o trabalho académico desenvolvido, o reconhecimento de antigos alunos, as crónicas na imprensa, atestam o conhecimento, o pensamento estruturado e a inovação na abordagem. Quem se interessa por Ciência Política e Relações Internacionais dificilmente terá passado ao lado dos livros de Adriano Moreira e certamente terá nos arquivos entrevistas e artigos que reflectem o seu pensamento. Podemos concordar ou não, mas tem esse inegável mérito de nos ajudar a pensar.
Simultaneamente, é impossível ignorar essa pertença a um governo fascista e a proximidade com o regime durante parte da vida. A carreira académica e o pensador que se revelou ao logo dos anos, sendo extremamente relevante, não apaga a nódoa. Adriano Moreira chegou a Ministro em 1962, tinha 38 anos, era advogado e já tinha sentido na pele a natureza do regime. Seria até uma ofensa à inteligência e à memória de Adriano Moreira considerar que fez parte de um Governo sem saber que tipo de regime estava a servir.
Quem de forma mais intensa sofreu com o fascismo não consegue perdoar quem serviu o regime de Salazar. É natural. Mesmo quem não sofreu directamente, e tem memória, não aceitará esquecer. É natural e é bom que assim seja.
Mas uma vida, qualquer vida, merece ser vista de forma inteira, nunca por vingança, e principalmente, em termos históricos, para tentarmos chegar o mais próximo possível da verdade completa.
Poderemos questionar como é que um homem tão sábio esteve várias vezes do lado errado da história. Não sei a resposta, mas sei que é importante ler Adriano Moreira.