
De tudo o que conhecemos da vida de Aristides de Sousa Mendes, as Honras de Panteão Nacional são absolutamente merecidas. Coragem, sacrifício, dignidade, exemplo. Nenhuma dúvida em relação a isso. Mas, para um homem que pagou caríssimo o facto de ter desobedecido a um governo fascista, preferindo salvar milhares de seres humanos, era desnecessário, nesta derradeira homenagem, não se lhe fazer justiça por inteiro.
Foi constrangedor ouvir a justa referência à primeira mulher de Aristides e aos 14 filhos que tiveram, e não ouvir uma referência à mulher com quem casou em segundas núpcias e à filha que ambos tiveram. Porquê? A omissão era dispensável. Um filho – e um casamento – não se esconde, não se apaga, não se ignora, não se omite, principalmente numa cerimónia em que se refere a família do homenageado. Cada palavra deve ser medida com precisão cirúrgica. A vida de um ser humano vale por inteiro. Não é mais família aquela que resulta de um primeiro casamento, de um segundo ou de outros que se lhe possam seguir. A vida é o que é e, tal como a História, não deve ser reescrita. Não sabemos se houve essa intenção, mas o tempo de apagar pessoas das fotografias já lá vai. Ou devia.

No discurso do presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, há uma (justa) referência a Angelina, primeira mulher de Aristides, e aos 14 filhos que tiveram. Nenhuma referência a André Cibial (com quem Aristides casou após a morte de Angelina) nem à filha de ambos, Marie-Rose. Ferro Rodrigues falou de um “injusto e cruel esquecimento”, para descrever a provação que Aristides passou e o tempo que a reabilitação demorou a chegar. Mas foi também isso a que assistimos nesta homenagem: um injusto e cruel esquecimento de parte da família de Aristides.
Marie-Rose Faure de Sousa Mendes, hoje com 80 anos – oficialmente comemorou o 81º aniversário precisamente na data da homenagem no Panteão (19 de Outubro) porque é essa data que consta do registo embora tenha nascido, de facto, a 19 de Novembro de 1940) – filha de Aristides e de Andrée Cibial, não merecia estar em Pau (França) a seguir a homenagem ao pai, através da RTP3, e assistir a tamanha desconsideração.
Aliás, quando se fala de Aristides de Sousa Mendes, é constante, na comunicação social e, desta vez, num discurso oficial, a referência aos 14 filhos de Aristides. Não sabemos se se trata apenas de um erro repetido ou de uma omissão – a da filha Marie-Rose – intencional. Em muitas páginas de Internet sobre Aristides de Sousa Mendes apenas são referidos 14 filhos. É óbvio que é Marie-Rose a esquecida. Será conservadorismo que ainda não admite segundo casamento? Será factor religioso, sabendo-se que Aristides era um fervoroso católico? Nada justifica a omissão quando até no museu Aristides de Sousa Mendes (http://mvasm.sapo.pt/BC/A.-de-Sousa-Mendes/pt) consta o casamento com Andrée Cibial (em Outubro de 1949) e o nascimento de Marie-Rose (a 19 de Outubro de 1940).

Marie-Rose é a presidente honorária do “Comité National Français en Hommage à Aristides de Sousa Mendes”, criado em Bordéus em 1988. Em casa, guarda fotografias e alguns objectos que foram do pai. Não se lhe ouve uma palavra de rancor pelo pouco tempo que passaram juntos ou pela decisão que lhe alterou completamente a vida. Pelo contrário, sente-se um orgulho enorme por ter o nome que tem.
Para a cerimónia do Panteão Nacional, os organizadores pediram à família uma lista das pessoas que desejavam assistir, embora houvesse um número limite. Marie-Rose, única filha viva, não recebeu convite oficial mas, por não poder deslocar-se a Lisboa, logo que soube da lista de familiares pedida pela organização, cedeu o seu lugar.
De facto, Marie-Rose teria dificuldade em deslocar-se a Lisboa, mas teria sido bonito vê-la receber das mãos do Presidente da República a bandeira nacional que cobria a placa, no Panteão Nacional, com o nome do pai. Não está em causa o facto de ter sido entregue a um outro familiar, que certamente a saberá guardar dignamente, mas depois de uma vida tão difícil, principalmente enquanto criança, seria certamente um momento de encher o coração.
Desconhecia o segundo casamento de Aristides Sousa Mendes. Também não sabia que tinha uma filha do segundo matrimónio. Perante factos, não há argumentos. Estamos perante uma vergonha que atinge quer a família de um herói, quer as mais altas autoridades de Portugal. Aristides Sousa Mendes merecia uma homenagem que não omitisse parte significativa da sua vida familiar. Inqualificável! A História não se apaga.
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