
Desta vez foi o Qatar. Depois do Líbano, Síria, Irão, Iémen e Faixa de Gaza, Israel atacou o Qatar. Porque sim, porque pode. Ou melhor, ninguém o impede! Em relação aos outros países, Israel até poderá dizer que respondeu a ataques desses países, mas em relação ao Qatar não pode usar esse argumento. Assim sendo, o “direito à autodefesa” passa agora por atacar o país onde está a liderança política do Hamas (desde 2012, por conselho norte-americano), o inimigo, mas simultaneamente o movimento palestiniano com o qual, supostamente, Israel está a negociar um acordo de cessar-fogo em Gaza. Acontece que não é a primeira vez que Israel ataca um país por albergar um líder político do Hamas: Israel atacou o Irão para matar, e matou, Ismail Haniya, em Julho de 2024.
Desta vez, em Doha, no Qatar, os caças israelitas atacaram uma zona residencial onde estava a delegação do Hamas, alegadamente numa reunião para debater a recente proposta de acordo de cessar-fogo para Gaza, enviada por Donald Trump. É absolutamente perverso que ainda há dois dias Donald Trump tenha enviado essa proposta com caracter de urgência e até tenha ameaçado o Hamas dizendo que não haveria outra. É absolutamente perverso que os principais negociadores tenham sido atacados em “casa” de um dos mediadores quando estavam a analisar uma proposta enviada por um outro mediador que é, simultaneamente, o melhor aliado de Israel. É tudo demasiado perverso.
Ataque falhou
Mas o ataque não atingiu os objetivos: (ainda não há total certeza, mas) os dirigentes do Hamas sobreviveram. Ao que se sabe, morreram seis pessoas: o filho do negociador chefe do Hamas, Khalil al-Hayya, o seu chefe de gabinete, três elementos da segurança do Hamas e um polícia catari.

O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, disse agora que o ataque ao Qatar foi desencadeado devido ao recente ataque em Jerusalém que matou seis israelitas (ataque reivindicado pelo Hamas), mas o chefe do Estado-Maior israelita, Eyal Zamir, já tinha ameaçado (31 de Agosto de 2025) assassinar os líderes do Hamas no estrangeiro: “As nossas acções ainda não estão concluídas; a maior parte da restante liderança do Hamas está no estrangeiro, e nós também os apanharemos.”
Este ataque israelita tem ainda dois aspectos associados que devem ser levados em conta: aconteceu no dia em que começou em Nova Iorque a Assembleia anual das Nações Unidas e no dia em que Netanyahu devia ter ido a tribunal para ser ouvido num dos processos em que está envolvido. A guerra em Gaza e os acontecimentos a ela associados têm sido motivo útil a Netanyahu para se furtar a comparecer perante a justiça.
Neste momento, Benjamin Netanyahu desencadeia acções de guerra completamente inaceitáveis à luz do Direito Internacional e com uma cadência em que cada uma delas faz esquecer a anterior. O primeiro-ministro israelita vive numa espécie de bolha supremacista em que se julga dono do mundo e mostra total desprezo pelas leis internacionais e pela vida humana.
Qatar e o amigo americano
O ataque ao Qatar é um ataque à soberania de um dos principais aliados dos Estados Unidos na região, onde está o comando norte-americano da região do golfo e algumas das principais bases militares; é o mesmo Qatar que foi atacado pelo Irão em resposta a ataques norte-americanos, em Junho deste ano.
Donad Trump não se quis associar publicamente a esta decisão israelita e disse que o ataque ao Qatar é desconfortável para os Estados Unidos e que não serve os objetivos de Telavive ou de Washington. Trump acrescentou que “o ataque ao Qatar foi uma decisão de Netanyahu e não uma decisão minha” e que não ficou “satisfeito” pela forma como as coias decorreram. Netanyahu apressou-se a dizer que o ataque é da exclusiva responsabilidade do governo de Israel. Tudo isto pode ser verdade, mas há aqui dois “pequenos” problemas. Desde logo, Israel e Estados Unidos (com Donald Trump ou sem ele) mantêm uma ligação que dificilmente será abalada e por via disso e do que tem acontecido em Gaza – um prolongar da guerra que seria impossível sem o apoio norte-americano – só uma grande dose de boa vontade e ingenuidade permitiria admitir que um acto de guerra como aquele que foi cometido no Qatar (um forte aliado norte-americano) tivesse sido concretizado sem o conhecimento, cobertura e apoio dos Estados Unidos. Aliás, também é difícil admitir que os Estados Unidos não soubessem com a antecedência suficiente que permitisse avisar o Qatar.
Donald Trump apressou-se a telefonar ao Emir do Qatar, Tamim ben Hamad Al-Thani, assegurando que um ataque como este não se repete. Outra coisa não seria de esperar, atendendo à forte presença militar norte-americana no Qatar e aos negócios e contratos de muitos milhares de milhões de dólares que enchem os cofres das empresas norte-americanas. Donald Trump pode brincar com muita coisa mas não brinca com os negócios. Talvez por isso o Emir do Qatar veio dizer que mantém a disponibilidade para continuar a fazer a mediação entre Israel e o Hamas.
Matar negociações
Pelo que se sabe, o ataque ao Qatar não matou os altos dirigentes do Hamas, mas pode travar, e até matar, o processo de negociações para o cessar-fogo. Em Israel há quem acredite que o ataque à liderança política do Hamas pode favorecer as negociações para o cessar-fogo, mas por outro lado, é difícil a uma qualquer liderança política aceitar negociar com uma outra parte que, ao mesmo tempo, a pretende matar. Aliás, o ataque parece ter um objetivo principal: matar as negociações. Não havendo negociações, Israel tem um argumento para continuar o massacre e a limpeza étnica em Gaza. É tudo demasiado macabro. Falta saber qual será a próxima acção de Israel que fará esquecer este ataque ao Qatar.
PS – Estamos também certamente muito curiosos para ver o que vai sair da reunião do Conselho de Segurança da ONU, já convocada por Argélia e Paquistão. O que vai decidir o Conselho de Segurança depois de Israel ter violado a soberania do Qatar? Qual será a posição dos Estados Unidos?
Pinhal Novo, 10 de Setembro de 2025
02h00
jmr
