
O Mundo está num momento difícil. Dizemos isso – e é verdade – porque é este o nosso momento, mas a História diz-nos que o Mundo já atravessou guerras e conflitos extraordinariamente complicados, eventualmente ainda mais do que os actuais.
Nestes picos de violência e guerra, há uma tendência para tentar encontrar os bons e os maus, os que guerreiam com razão e em defesa de causas justas, e os outros, os que apenas querem matar e conquistar, em nome de um interesse egoísta. A partir deste raciocínio, estão encontrados também os “frequentáveis” (aqueles com quem se pode colaborar, apoiar, falar/negociar e) e os “infrequentáveis” (aqueles que devem ser votados ao ostracismo, a quem se aplica sanções, contra os quais os “bons” combatem).
Se nos restringirmos às duas guerras que neste momento preocupam o mundo, chegamos aos “infrequentáveis” Vladimir Putin (presidente da Federação Russa) e, por arrasto, Aleksandr Lukashenko (presidente da Bielorrússia), e ao “frequentável” Volodymyr Zelensky; na outra guerra, Benjamin Netanyahu (primeiro-ministro de Israel) é o “frequentável”, enquanto o Hamas e os seus dirigentes são considerados “infrequentáveis”.
Há um livro muito interessante, “Fréquenter les Infréquentables” (frequentar os infrequentáveis), com direcção de Manon-Nour Tannous, que aborda esta questão e mostra muito bem como tudo isto é volátil e como os “frequentáveis” de hoje podem ser os “infrequentáveis” de amanhã, tudo dependendo dos ventos da geopolítica e, ainda mais importante, de quem decide estabelecer esse rótulo aos protagonistas em conflito. Qual é a legitimidade para que alguns Estados coloquem em outros (líderes de um Estado ou líderes de movimentos que emergem das sociedades que pretendem representar) esse rótulo que distingue a frequentabilidade? São quase 300 páginas que valem a pena.
Netanyahu
No caso particular da guerra na Faixa de Gaza, a par do sempre esgrimido e repetido argumento de que Israel tem o direito de se defender (como se os palestinianos não tivessem o mesmo direito), será que Benjamin Netanyahu e o seu governo podem continuar na lista de “frequentáveis”? Será que a morte indiscriminada de civis palestinianos sob as bombas e os ataques israelitas permitem manter esse “selo de garantia” que o Ocidente lhe atribui? Será que os ataques aos hospitais de Gaza, a pretexto de que serviam de centros de comando do Hamas – acusação não provada apesar das muitas imagens divulgadas por Israel – e a humilhação de prisioneiros palestinianos não configuram crimes de guerra e crimes contra a humanidade? Será que a deslocação forçada de centenas de milhares de pessoas, nada significa? Será que a privação de abrigo seguro, água, electricidade, alimentos e medicamentos, nada significa? A ocupação ilegal da Cisjordânia e o cerco à Faixa de Gaza são aspectos sem importância? A suposta moral do Ocidente para defender os Direitos Humanos fica terrivelmente abalada se fechar os olhos ao que está a acontecer em Gaza.
Hamas
Quanto ao Hamas, o ataque de 7 de Outubro, pode igualmente configurar os mesmos crimes de guerra e contra a humanidade. Ainda assim é preciso ter em conta que esse ataque teve um aproveitamento propagandístico que nos faz refrear a tendência para conclusões muito definitivas. Desde logo a questão dos bebés alegadamente decapitados. Afinal, não há provas, e até o presidente norte-americano que inicialmente disse que tinha visto provas veio depois emendar dizendo que “alguém lhe dissera”. Outra questão que está por esclarecer é a de saber quantos israelitas morreram nesse dia 7 de Outubro vítimas de “fogo amigo” quando os militares israelitas contra-atacaram. Israel não investigou o caso ou, se investigou, não divulgou as conclusões.
Antes de 7 de Outubro
E, tal como António Guterres, sublinhou: o ataque do Hamas não surgiu do nada. Quantos palestinianos matou Israel até 7 de Outubro, nos bombardeamentos e incursões militares em Gaza, e na Cisjordânia? Quantas casas palestinianas Israel demoliu? Quantos palestinianos foram presos? Israel já assassinou dois líderes do Hamas (o fundador Sheikh Ahmed Yassine e o sucessor Abdel Rantissi) e tentou assassinar Khaled Meshal (envenenado na Jordânia por agentes da Mossad, tendo Israel sido obrigado a dar o antídoto para o veneno utilizado sob pena de não ter de volta os agentes envolvidos no crime). Imaginemos o que seria se fosse o Hamas a praticar esta política de assassínios selectivos em relação a Israel.
Cessar-fogo
Aqui chegados, com mais de vinte mil mortos em Gaza e com uma população a que falta tudo e a tentar refugiar-se num espaço cada vez mais exíguo, sem que os bombardeamentos sofram qualquer redução, a única medida sensata é um cessar-fogo imediato. Não é possível a qualquer cidadão com um pingo de decência entender qualquer governo ou instituição que não exija um cessar-fogo.
Até em Israel cresce a indignação e Benjamin Netanyahu começa a ter dificuldade, apesar do discurso belicista que agrada aos parceiros de governo e à franja da população que quer os palestinianos expulsos de Gaza e, de preferência, também da Cisjordânia.
Dois meses e meio depois do início da guerra e depois de há muito ter anunciado o controlo da cidade e do norte da faixa de Gaza, os combates continuam nessas zonas. O Hamas está abalado, mas resiste, e as baixas nas forças israelitas começam a ser demasiado elevadas para serem defendidas politicamente.
Um antigo primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert, já avisou (jornal Haaretz, 22 de Dezembro): “A eliminação do Hamas não será alcançada” e acrescentou que “Netanyahu está a travar uma guerra pessoal”. Isto significa duas coisas: um dos objetivos da guerra não será alcançado; Netanyahu sabe que quando a guerra terminar dificilmente continuará primeiro-ministro e terá de enfrentar os vários processos de que é alvo na justiça. Quanto mais tarde melhor. Olmert não é o primeiro a deixar este tipo de aviso.
Caberá ao leitor decidir quem é “frequentável” ou “infrequentável”.
