O cinismo

Campo de refugiados de Jabalia, norte da Faixa de Gaza. Foto REUTERS Mohammed Al-Masr

Quem ainda tiver um pingo de humanidade a correr-lhe nas veias tem de se sentir muito incomodado com o que está a acontecer na Faixa de Gaza. O massacre que por lá está a ser levado a cabo tem de ser condenado e a morte de todas aquelas pessoas – cuja maioria nada tinha a ver com a guerra – só será respeitada se quem as matou for julgado por isso. Trata-se do respeito para com os que morreram e ficaram feridos e do respeito que uma comunidade internacional precisa de ter, sob pena de ser cúmplice em bombardeamentos de escolas, hospitais, instalações das Nações Unidas, de norte a sul da Faixa de Gaza, atingindo civis de forma indiscriminada. Não há memória de algo deste género: bombardear pessoas que pura e simplesmente não podem fugir do território que está a ser atacado.

Não pode haver meias-palavras perante o que está a acontecer na Faixa de Gaza. Durante um mês mergulhei no conflito que opõe palestinianos e israelitas. Dura há décadas e tem agora um pico extremo de violência. Desse tempo, um mês, entre milhares de mortos e declarações inflamadas, juras de vingança, expressões de ódio e desesperança, imagens de horror puro e dilúvio de bombas em Gaza, guardo uma expressão que pode ter passado sem que porventura muitos tenham dado por ela, mas que revela o porquê de estarmos a viver este momento de grande violência e guerra.

Anthony Blinken, Secretário de Estado norte-americano, questionado (03.11.23) sobre a possibilidade de fazer entrar combustível na Faixa de Gaza e a possibilidade deste vir a ser utilizado pelo Hamas, respondeu que “o cinismo não tem fronteiras”. Esta frase, proferida por um Secretário de Estado norte-americano, no contexto do conflito entre palestinianos e israelitas – no qual os Estados Unidos têm sido, sempre, um actor determinante (dizer que é um mediador é uma falácia) e sempre ao lado de Israel – é, de facto, de um cinismo sem fronteiras. E sem limites! E é o cinismo e a hipocrisia que sempre têm marcado as atitudes de muitos dos actores internacionais quando se trata do conflito israelo-palestiniano.

Ainda na mesma conferência de imprensa, Blinken desenvolveu a lengalenga habitual: necessidade de pausas humanitárias (diz Blinken que podem ajudar a criar ambiente para a libertação de reféns), construção de uma paz sustentável e duradoura, solução dois Estados (assunto ausente na retórica norte-americana durante bastante tempo) e falou ainda sobre as constantes agressões dos colonos israelitas aos palestinianos da Cisjordânia. Joe Biden já tinha dito que essas agressões são gasolina na fogueira. Há uma série de itens que estão sempre no discurso da Casa Branca, mas são apenas frases repetidas que não têm – nunca tiveram – qualquer efeito concreto na acção dos governos israelitas.

Há décadas que os colonos israelitas agridem – e matam – palestinianos na Cisjordânia, queimando e arrancando oliveiras e culturas, construindo novos colonatos; há décadas que são demolidas e ocupadas casas palestinianas, por exemplo, em Hebron e Jerusalém Oriental; há décadas que vem encolhendo o território palestiniano onde seria suposto assentar o Estado da Palestina; há décadas que as cadeias israelitas estão cheias de palestinianos (muitos menores de idade) presos sem julgamento nem culpa formada; há locais na Cisjordânia que estão há semanas sujeitos a recolher obrigatório; há 16 anos que a Faixa de Gaza vive cercada, sem que os palestinianos desse território possam ter qualquer perspectiva de futuro; há décadas que os palestinianos sofrem a humilhação dos postos de controlo; há décadas que Israel pratica os assassínios selectivos; há décadas que as cidades da Cisjordânia sofrem as incursões do exército israelita… e poderíamos continuar.

Tudo isto tem acontecido bem debaixo do nariz de Washington e, já agora, também da União Europeia, como se nada de anormal se passasse. É por isso que é uma falácia pretender fazer crer que esta guerra começou a 7 de Outubro. Não! É mentira!

O ataque do Hamas, a 7 de Outubro, deve envergonhar-nos e os responsáveis pela morte de civis inocentes devem ser julgados. Devemos sentir vergonha pelas mortes e atrocidades cometidas contra inocentes. A guerra, qualquer uma, deve envergonhar-nos.

Mas dentro de cada guerra encontramos sempre vergonhas maiores. Uma delas, já a referi, é a dos Estados Unidos (e que ninguém venha com o argumento do preconceito em relação aos Estado Unidos…) e outra, é Ursula Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia. Há várias hipóteses para a vergonha a que nos tem submetido: não tem a mínima noção do que está em causa; ou sabe perfeitamente do que se trata e assume um apoio cego a Israel. O chorrilho de asneiras foi de tal ordem – alguém lhe deve ter escrito umas frases soltas que ela não soube ligar – que provocou atordoamento e uma pergunta: a senhora sabe do que está a falar? Acho que nunca sujou os sapatos nas ruas de Gaza, nem da Cisjordânia. Fazia-lhe bem.

Mas o momento de maior vergonha foi protagonizado pelo embaixador de Israel nas Nações Unidas. Deixando de lado qualquer protocolo, insultou o Secretário-geral António Guterres e, como bem escreve Alexandra Lucas Coelho (jornal Público, 3 de Novembro de 2023), «cuspiu na cara do mundo, dizendo que “a ONU não tem qualquer relevância”». Não tem relevância agora, porque quando a ONU assinou a “certidão de nascimento” do Estado de Israel (Resolução 181 da Assembleia Geral, de 29 de novembro de 1947) a opinião era certamente diferente. É obra!

No meio de todo o desastre da Comunidade Internacional relativamente ao conflito israelo-palestiniano, há um homem que tem feito o que dele se espera enquanto Secretário-geral da ONU. António Guterres colocou o dedo na ferida, disse o que era preciso dizer e, mais importante, não alterou o discurso depois da forte pressão (e insultos) a que foi submetido. Não é nada fácil quando, a este nível, se trata de pressão com a marca de Israel. Ao contrário de Anthony Blinken, Guterres demonstrou que o cinismo tem fronteiras e há limites que ele, Guterres, não ultrapassa. António Guterres honrou a ONU e o cargo que ocupa. O mundo agradece.

6 thoughts on “O cinismo

  1. Mais um excelente texto – friamente realista e jornalisticamente objectivo, como se impõe – do nosso mais experimentado e conhecedor Correspondente de Guerra no Médio Oriente, nas duas últimas décadas, sempre ao serviço da RTP – Rádio e Televisão de Portugal.
    António Rolão

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  2. Não menos cínico – mas mais chocante, por certo – foi a desconcertante ‘conclusão’ de Blinken, revelada há dias:
    “Já morreram demasiados Palestinianos em Gaza”.
    Como Jornalista, se estivesse presente, teria de lhe perguntar qual teria sido, em sua opinião, um número ‘aceitável’? Talvez um número igual ao dos Israelitas que o Hamas assassinou dia 7 de Outubro?
    Cinismo, é mau.
    Estupidez pura, é pior ainda.
    António Rolão

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  3. Hoje temos a possibilidade de ter acesso aos factos atrozes e não fingir que desconhecemos. Gratidão a quem como o José Manuel Rosendo mantém a integridade e o profissionalismo que faz com que o jornalismo ainda seja uma profissão muito nobre. Muito obrigado.
    Felizmente, há homens e mulheres que são íntegros e não se vendem. António Guterres tem sido exemplar e este seu gesto de não iludir a história, fará com que ele fique para a História dos Direitos Humanos.

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  4. Quando se diz que o conflito não tem solução raramente se tem em conta o papel que os EUA podiam e deviam desempenhar. Enquanto dos EUA continuar a chover apoio financeiro e moral incondicional numa Israel será forçado a alterar a linha de rumo de ocupação progressiva de toda a Palestina.

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