
Este texto não é sobre o pedido de adesão à NATO, efectuado por Finlândia e Suécia, mas sim sobre os objectivos do Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, que ameaça vetar a entrada dos dois países na NATO.
Serão os curdos as primeiras vítimas da adesão da Suécia e Finlândia à NATO? A pergunta é feita por Jonas Sjöstedt, ex-presidente do Partido de Esquerda na Suécia, num artigo publicado no jornal Arbetet.
Relações a norte
A Suécia mantém relações com dirigentes curdos, em particular na sequência do combate dos curdos à organização Estado Islâmico. A Turquia não gosta dessa relação. Aliás, para Erdogan, se alguém tiver a opinião de que o povo curdo deve ter direitos civis e políticos, é imediatamente catalogado de amigo do PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, cujo líder está preso desde 1999, após ter sido detido no Quénia pelos serviços secretos turcos, com a ajuda da CIA e de Israel.
Na Suécia há cerca de 100.000 curdos e actualmente, seis parlamentares suecos são de origem curda; na Finlândia, a comunidade curda é cerca de 15 mil pessoas.
A Suécia mantém contactos oficiais com grupos de curdos, mas recusa que esses contactos sejam com as organizações consideradas terroristas. Aliás, a Suécia foi (1984) o primeiro país, após a Turquia, a considerar o PKK como organização terrorista.
Suécia e Finlândia mantêm desde 2019 um embargo de venda de armas e equipamento militar à Turquia. É uma restrição alinhada com outros países europeus após a Turquia ter enviado tropas para o norte da Síria (zona curda). Os dois países nórdicos, principalmente a Suécia, também não deram seguimento aos pedidos de extradição que a Turquia fez relativamente a curdos ligados a movimentos que Ankara considera terroristas.
Outros assuntos em cima da mesa
É isto que sustenta os argumentos da Turquia e que o Presidente turco quer alterar, mas não só. Fala-se muito dos curdos como a causa imediata do veto turco à entrada de Suécia e Finlândia na NATO, mas Erdogan tem outras questões por resolver com os aliados ocidentais: aviões caça F-35 e Fethullah Gülen.
A Associated Press (AP) lembra que a Turquia acusa também a Suécia e a Finlândia de abrigar seguidores de Gülen, clérigo muçulmano exilado nos Estados Unidos, antigo aliado de Erdogan, mas acusado de ter estado na origem de uma tentativa de golpe militar em 2016. Os Estados Unidos recusam extraditar Gülen. Washington tem também uma ligação, embora ambígua, com os curdos da Síria.
As exigências de Erdogan no seio da NATO têm aliás um histórico que a AP recorda: em 2009, recusava aceitar o dinamarquês Anders Fogh Rasmussen como secretário-geral da NATO se um canal curdo (Roj-TV) na Dinamarca não fosse encerrado; em 2019, ameaçou bloquear o reforço da defesa dos países bálticos depois de ter sido criticado por atacar combatentes curdos no norte da Síria. Em ambos os casos acabou por recuar, mas a Roj-TV fechou em 2010.
Desta vez, mais do que a questão curda, Erdogan quer reverter a decisão dos Estados Unidos que retirou a Turquia do programa de desenvolvimento do caças F-35 depois de Ankara, em 2019, ter comprado o sistema de defesa aéreo russo S-400. A alternativa pode passar por uma versão actualizada dos caças F-16.
É tudo isto que está em causa e pode até acontecer que a questão curda seja deixada “para mais tarde”, porque é uma questão que rende bastante simpatia interna a Erdogan e pode ser útil nas eleições de junho de 2023. Para além disso, uma crise artificial na política externa é sempre algo apetecível para melhorar a aceitação interna.
Ainda como argumentos a apresentar à mesa da NATO em Bruxelas, a Turquia pode dizer que criticou a invasão da Ucrânia, ajuda Kiev com armamento e tentou facilitar o diálogo Rússia-Ucrânia, apesar de se opor a sanções contra Moscovo (metade do gás natural consumido na Turquia chega da Rússia).
Curdos “bons” e curdos “maus”
Voltando à “questão curda”, a política só é decente se for exercida de forma séria e coerente. Não pode haver conveniências que ditem “dois pesos e duas medidas”. Isto é: não se pode defender o direito dos ucranianos a decidirem o seu próprio destino e, ao mesmo tempo esquecer os direitos dos curdos.
A política externa da Turquia é muito hábil mas tem igualmente características de catavento. É um país da NATO que compra armamento a Moscovo, que intervém na guerra na Síria (invadindo parte do território sírio, principalmente zona curda) e que tanto parece apoiar os palestinianos de Gaza como abraça o governo israelita.
Ainda sobre a “questão curda” nem tudo é claro: em território turco os partidos curdos são perseguidos, frequentemente acusados de ligações terroristas e os seus dirigentes são presos; a Turquia mantém as melhores relações com o Governo Regional do Curdistão (iraquiano) – em nome das trocas comerciais – mas bombardeia com frequência as montanhas onde estão os combatentes do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) no Iraque e combate ferozmente as YPG (Unidades de Protecção Popular) sírias, que controlam a região nordeste da Síria. É importante referir que no Rojava decorre uma interessante experiência de governação onde, por exemplo, o papel das mulheres é fundamental e a democracia é algo levado muito a sério. A invasão turca no território sírio, se envolvesse outros protagonistas, noutro local, já teria certamente tido outro impacto. Assim, como são os curdos (e Assad) os visados, ninguém parece importar-se.
A Europa não pode falhar
Veremos como termina esta saga, mas seria trágico ver países como a Suécia e a Finlândia virarem costas aos curdos, esquecendo que todos os povos têm direitos que não podem ser alienados. É certo que os curdos estão habituados a ser traídos, mas a Europa dos Direitos Humanos não pode seguir esse rumo.