Não perder a Alma

Sede da Autoridade Palestiniana (Mukata), Ramallah, Palestina, Novembro de 2004. Foto: jmr/arquivo

O actual estado do Jornalismo provoca desalento, mas há muitos camaradas que apesar de atingidos pelo desânimo, ainda acreditam que o Jornalismo é necessário e não aceitam a metamorfose em entretenimento mal disfarçado ou em produto descaracterizado vendido como se fosse um sabonete. Provavelmente interessará a poucos este meu estado de alma mas também é verdade que um estado de alma não faz mal a ninguém, antes pelo contrário.

Sabemos bem o estado a que o Jornalismo chegou: concentração da propriedade dos meios de comunicação social, emagrecimento das Redacções em simultâneo com a multiplicação das plataformas, muitos profissionais mal pagos e outros tantos inexperientes, medo de perder o pouco que se ganha, precariedade, jornalistas com décadas de profissão mas já cansados de remar contra a maré, profissionais muito bem pagos que olham mais para o umbigo do que para o serviço que deviam prestar, “estrelas” que nem se sabe muito bem como subiram ao céu e que focam a atenção na sua própria imagem, critérios editoriais que substituíram as informações/notícias importantes por aquilo que é interessante mas, muitas vezes, é puro entretenimento. A lista de problemas é enorme e ainda agravada por um mimetismo que só se pode explicar pela insegurança de quem decide. Mas o maior problema é mesmo o da propriedade dos órgãos de comunicação. Dizer-se que a liberdade de expressão deve ser acompanhada da liberdade de propriedade de órgãos de comunicação é acertado, mas insuficiente, porque se ficarmos por aí, essas liberdades estão circunscritas a quem tem poder económico.

Não é por acaso que as pessoas procuram menos jornais, rádios e televisões. O acesso fácil a outras fontes de informação – embora menos confiáveis – não explica tudo. A redução da procura acontece porque os jornais, as rádios e as televisões deixaram de tratar – ou reduziram substancialmente – os assuntos que interessam às pessoas e do ponto de vista que lhes interessa. Porquê? Desde logo porque a comunicação não é descodificada: economista fala para economista; financeiro fala para financeiro, político fala para político. E o jornalista assiste. Muitas vezes, para além de não descodificar, incorpora essa linguagem codificada. Depois, porque, por exemplo, os comentadores, quase sempre os mesmos, não se sabe quando estão a comentar algo a que são alheios ou a defender interesses próprios. Aliás, a transparência – e o rigor – devia obrigar a que cada comentador fosse apresentado com os interesses e poderes a que está associado. Depois ainda, porque os que mais são chamados a entrevistas, debates, comentários, análises, artigos de opinião, são os que têm poder ou a ele estão associados. São em muito menor número as presenças que representem o cidadão comum ou os pontos de vista daqueles para quem os jornais, as rádios e as televisões são feitos – o chamado “grande público”. Assim sendo, como lhes pode interessar este tipo de produto? Afinal, os jornalistas trabalham para quem? Para quem os lê, ouve e vê, ou para as administrações, accionistas e respectivos interesses económicos?

No entanto, nem tudo é o caos e continuamos a ter bons momentos de Jornalismo, mas o corredor por onde caminhamos é cada vez mais estreito e não há sinal de mudança nas opções que aqui nos trouxeram. Aliás, insistem, os que decidem, em modelos e opções cujo fracasso está bem à vista. E o problema não é apenas o Jornalismo, porque se fosse apenas isso seria tão só o mesmo que outras profissões, já extintas, enfrentaram, em determinado momento da história. O problema é mesmo a democracia e a nossa liberdade. Que se saiba, até agora, não há substituto para o Jornalismo enquanto meio que proporciona o contraditório, a diversidade, a informação credível e indispensável para escolhas e decisões racionais e informadas. O momento da nossa democracia devia ser grande motivo de preocupação e não é por acaso que aqui chegámos. Um Jornalismo forte é intrínseco à auto-defesa da democracia; o inverso resulta no que estamos a assistir ou em algo ainda pior.

É curioso que ainda no último congresso de jornalistas se tenham ouvido as mais apaixonadas declarações de amor pela profissão, pela obrigação do rigor, por dar informação sobre o que é realmente importante e não o que que dá “likes” nas redes sociais ou audiências à custa de largos minutos de televisão a mostrar um autocarro de um qualquer clube de futebol. Questionemo-nos: algum de nós nota sinais de mudança?

Mas a resistência de cada um de nós pode e deve conduzir-nos a soluções que honrem a profissão, que sejam motivadoras e que nos enriqueçam, para melhor podermos responder às exigências da profissão que escolhemos. E, nessa perspectiva, o Jornalismo é uma fonte de prazeres de que nem a mais refinada e violenta ignorância alheia nos consegue privar. As grandes e boas conversas com os entrevistados, a descoberta de pessoas maravilhosas que nunca conheceríamos se não fossemos jornalistas, os livros e os estudos que nos mostram o mundo de uma forma sempre diferente e enriquecedora, até os dramas e as guerras que enfrentamos e que nos mostram como a vida pode ser muito difícil, os locais que podemos conhecer mesmo que seja de raspão, a solidariedade entre camaradas de alma grande e até – seria ingratidão não o reconhecer – os agradecimentos e incentivos de pessoas que nos procuram apenas com essa intenção de nos dar um sinal pelo nosso trabalho. É por tudo isto que vale a pena continuar, deixando o ridículo para quem quiser continuar o caminho sem saída.

Mas o que todos temos de perceber, num olhar mais egoísta da profissão, é que, quando a desgraça deixar de ser reversível, caímos todos no mesmo poço sem fundo e teremos de mudar de vida. A desgraça associada é que aqueles que mais têm contribuído para o descrédito da profissão vão ter futuro assegurado. Ou não, porque também é verdade que “Roma não paga a traidores”.

A que propósito vem tudo isto? Pois nem eu sei, mas como escrevi logo de início, todos temos direito a um estado de alma.

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