Um plano Imperial e de rendição

Escrevo a poucas horas da esperada libertação de reféns israelitas e prisioneiros palestinianos. As armas têm estado caladas desde que o governo de Israel ratificou o acordo de cessar-fogo e em Gaza assistiu-se (na foto) ao regresso dos palestinianos às casas de onde tinham sido obrigados a fugir e, na maioria dos casos, apenas ao local onde já tiveram uma casa.

Na RTP oiço um palestiniano: “A cidade de Gaza vale o mundo inteiro. Quando chegámos, o meu filho chorou. A minha casa está destruída mas eu voltarei”. Oiço um outro palestiniano, com uma enxada ao ombro: “Esta é uma vitória e dou os meus parabéns ao povo de Gaza por este grande triunfo. A Netanyahu digo que, se Deus quiser, iremos reconstruí-la. Não importa quanto vocês destruam, nós iremos reconstruir”.

Também ouvi/vi na Al Jazeera o momento em que o enviado especial de Donald Trump, Steve Witkoff, se dirigiu a uma enorme multidão reunida na “Praça dos Reféns” em Telavive, começando o discurso com o nome de Benjamin Netanyahu. A resposta da multidão foi um coro de assobios e uma imensa vaia. Witkoff insistiu na fórmula, dizendo de novo o nome de Netanyahu e obteve a mesma resposta: mais assobios e outra vaia monumental.

Os sinais que atrás referi são obviamente pequenos sinais, mas simbolizam a resistência dos palestinianos e uma sociedade israelita farta da guerra, e retiraram margem de manobra a Benjamin Netanyahu para continuar a guerra, factores que também contribuíram para que Trump tivesse decidido forçar o primeiro-ministro israelita a aceitar o plano que lhe apresentou.

Diga-se que este “plano Trump” tem tudo para correr mal, mas também é verdade que tem um lado muito positivo: a matança em Gaza terminou (ainda vamos ver se terminou mesmo…), reféns e alguns prisioneiros vão ser libertados, e a ajuda humanitária começa a entrar na Faixa de Gaza salvando assim muitas vidas palestinianas. Há muito que se tinha tornado insuportável o sofrimento palestiniano e acreditem que as televisões não mostram nem metade das imagens dramáticas dos ataques israelitas. O problema é que o lado positivo que leva de imediato à aceitação do “plano Trump”, esconde um outro lado demasiado obscuro e preocupante para os palestinianos.

Desde logo, este “plano Trump” tem todas as características de um plano de rendição do Hamas, e dos palestinianos, exigindo tudo ao movimento palestiniano e nada exigindo a Israel, sendo assim um plano perverso: exige tudo ao ocupado, não exige quase nada ao ocupante e olha para o problema como se ele não tivesse um passado e uma história. É um plano que tem implícito o direito de autodefesa de Israel, o ocupante, para que possa viver em segurança, e ignora o mesmo direito de autodefesa aos palestinianos, os ocupados, para que possam viver em liberdade e sem tutela alheia. Quando esta questão se coloca, recordar o que diz a nossa Lei de Defesa Nacional pode ser uma boa ajuda: “É direito e dever de cada português a passagem à resistência, activa e passiva, nas áreas do território nacional ocupadas por forças estrangeiras”. Isto pode ajudar aqueles que consideram que os palestinianos não têm direito à autodefesa e questiona todos os que assim pensam, porque estão a recusar aos palestinianos o que nós, portugueses, queremos para nós: o direito de resistir em caso de invasão estrangeira. Podem recusar essa leitura e até a comparação, e podem até argumentar que ao contrário da Palestina, Portugal é há muito um Estado independente e soberano, mas acreditem que é mesmo assim que os palestinianos olham para o conflito: sentem o direito de resistir a quem ocupa a sua pátria, a quem ocupa o território que lhes pertence, a quem os oprime e humilha.

Este “plano Trump” ignora essa realidade, esse passado e tudo o que conduziu ao 7 de Outubro de 2023, como se o que aconteceu até aí fosse algo normal, dando assim por adquirido, com essa omissão, que a ocupação, a repressão e a violência exercida durante décadas por Israel contra os palestinianos, são assuntos de uma realidade já considerada “normal” e um facto consumado. É uma atitude transposta para um “plano Trump” que traduz uma ideologia imperial e colonialista, que transfere a culpa para o ocupado e alivia/limpa a responsabilidade e a culpa do ocupante. Nada que surpreenda, tendo em conta a génese dos próprios Estados Unidos da América, a forma como foi criado o Estado de Israel e a atitude imperial do Reino Unido que, apesar de ter perdido o Império, ainda se vê ao espelho como um dos donos do mundo. Não devemos esquecer que foi o Reino Unido que produziu a Declaração Balfour, na qual prometeu, numa terra que não lhe pertencia, todo o apoio à criação de “um lar nacional judaico” salvaguardando que isso não devia prejudicar os direitos civis e religiosos das populações não judaicas da Palestina. Sabemos todos o que aconteceu. Agora, o Reino Unido quer regressar, com Tony Blair – que é apenas a pessoa mais desqualificada para a função – a ter um papel no comité que vai supervisionar a execução do “plano Trump”.

E depois da libertação dos reféns?

Será bom que este plano não tenha apenas por objetivo libertar os reféns israelitas e que tudo o resto não seja apenas uma encenação para permitir essa libertação. Este alerta parte do que é exigido ao Hamas e aos palestinianos: desarmamento do Hamas, eliminação da participação política do Hamas, exílio dos membros do Hamas que aceitem a saída de Gaza, Gaza será governada por uma autoridade transitória (com a supervisão de um “Comité de Paz” liderado por Donald Trump) sem a participação do Hamas ou da Autoridade Palestiniana e a Autoridade Palestiniana tem de fazer “reformas”.

Reparem que não é exigido o desarmamento das milícias e gangues palestinianos, armados por Israel para combater o Hamas, nem é feita qualquer referência que estabeleça que Israel não volta a atacar a Faixa de Gaza, mas existem várias referências ao desarmamento do Hamas e de outras facções palestinianas: “Todas as infraestruturas militares, terroristas e ofensivas, incluindo os túneis e as instalações de produção de armas, serão destruídas e não serão reconstruídas”. Para além disso, “será dada uma garantia pelos parceiros regionais para assegurar que o Hamas e as outras facções respeitam as suas obrigações e que a nova Faixa de Gaza não constituirá uma ameaça para os vizinhos e as suas populações”. Tudo blindado em relação ao Hamas, obrigações definidas ao milímetro, referências vagas em relação a Israel.

E este “plano Trump” tem um pecado capital: foi feito sem a participação directa dos palestinianos e até, se bem se lembram, apresentado como um “pegar ou largar” que só foi abandonado porque o Hamas disse que “aceitava, mas…”. Aceitava libertar os reféns todos de uma vez, mas queria negociar o resto. Trump e Netanyahu não tinham forma de recusar, sob pena de darem um sinal de desprezo pela vida dos reféns israelitas num momento em que, pela primeira vez, o Hamas aceitava libertá-los todos de uma só vez.

O mais difícil

Como é que o Hamas vai ser desarmado? O movimento palestiniano diz que as armas são necessárias à resistência enquanto houver ocupação e até que haja um Estado da Palestina. Podemos concordar ou não, mas é o ponto de vista do Hamas. Até em termos práticos esse desarmamento é uma tarefa difícil: onde estão as armas? Nas centenas de quilómetros de túneis que Israel diz existirem na Faixa de Gaza? Como é que serão encontradas e retiradas? Neste contexto, quando é que se poderá dizer que o Hamas já está desarmado? Ou será que é uma forma de manter Israel a ocupar parte de Gaza com o argumento de que há armas por encontrar?

O “plano Trump” não refere, mas uma das condições da reforma da Autoridade Palestiniana passa pela realização de eleições. Sendo Jerusalém Oriental território palestiniano anexado por Israel, será que Israel vai autorizar a Autoridade Palestiniana a realizar eleições neste território? Nos últimos anos sempre recusou. Ou será que o objetivo é que a Autoridade Palestiniana realize eleições deixando de fora os palestinianos de Jerusalém Oriental para que depois Israel possa dizer que a própria Autoridade Palestiniana reconhece que Jerusalém Oriental já faz parte do Estado de Israel?

Ainda quanto a eleições palestinianas, se o Hamas, enquanto força política, for banido do contexto político como é que se garante que os candidatos que vierem a surgir não têm simpatia ou até anterior ligação ao Hamas? Terão de ter um atestado de bom comportamento para poderem candidatar-se?

É fantástico como do lado palestiniano nunca se colocou a questão de saber quem os israelitas elegem para depois se saber se pode ou não haver negociações; do lado israelita essa questão está sempre a ser colocada: Israel, ora não negoceia com governos do Hamas, ora não negoceia com governos que tenham elementos do Hamas; ora não negoceia com terroristas, ora não negoceia com representantes fracos – como chegou a ser dito de Mahmmod Abbas.

Para além de todas estas questões de difícil resolução, o “plano Trump” tem outro aspecto positivo mas que deve ser visto com cuidado. Quando refere de forma muito clara que “ninguém será forçado a abandonar Gaza, e aqueles que o desejarem fazer serão livres de o fazer e de regressar”, isso é positivo. Acrescenta que “nós encorajamos as pessoas a ficar e oferecer-lhe-emos a ocasião de construir uma Gaza melhor”. São aspectos que parecem fechar a porta a ideias que Trump chegou a apresentar e Netanyahu apoiou, de expulsar os palestinianos de Gaza para que fosse feita a reconstrução. Essa perspectiva parece ter sido abandonada, mas é preciso cautela e tudo deve ser lido em conjunto porque apesar de parecer afastada a ideia peregrina da “Riviera de Gaza”, a sua essência emerge com toda a força, nomeadamente quando se estabelece que “um plano Trump de desenvolvimento económico para reconstruir e dinamizar Gaza será criado, reunindo um painel de peritos que contribuíram para a criação de cidades moderas e florescentes do Médio Oriente” … “Muitas propostas de investimento bem pensadas e ideias interessantes de projetos imobiliários foram desenvolvidas por grupos internacionais bem-intencionados e serão consideradas para alcançar uma estrutura de segurança e governação que atraia e facilite estes investimentos…”. A ideia da Riviera, se está a morrer, ainda estrebucha.

Pinhal Novo, 13 de Outubro de 2025

02h00

jmr

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