De que paz estamos a falar?

Monumento (Ícone da Memória da Paz) na Praça da Paz, em Sharm el Sheick

Sharm el Sheick pode vir a ser o ponto de partida para a paz. Após dois anos de carnificina israelita na Faixa de Gaza e depois da carnificina efectuada pelo Hamas a 7 de Outubro de 2023, podemos ter a esperança de um entendimento entre israelitas e palestinianos no sentido de construírem um “nunca mais” para os dois lados. É apenas uma esperança, assente na perspectiva optimista de quem acredita que o mundo pode ser melhor. Mas essa pequena possibilidade rapidamente será perdida se a única intenção for “apenas” a de calar as armas na Faixa de Gaza, deixando que tudo o resto fique tal qual estava a 6 de Outubro de 2023. Pode haver a ilusão que tudo estava bem e tranquilo, mas não estava. Antes pelo contrário. A paz que, eventualmente, venha a resultar das actuais negociações no Egipto, não pode ser a paz do 6 de Outubro de 2023. Nestas negociações deveria ser encontrado o caminho para Israel parar com a ocupação e o Estado da Palestina tornar-se uma realidade, sob pena de estarmos perante um episódio de uma encenação que apenas tem como objetivo a libertação dos reféns israelitas.

Sinais

Há aliás um sinal muito perigoso no chamado “plano Trump” que está a ser negociado em Sharm el Sheick: não há uma única referência à Cisjordânia, o que pode ser interpretado como uma tentativa de dividir palestinianos, aprofundando a mesma divisão que os palestinianos não souberam superar e que Israel alimentou durante quase duas décadas, e que outros, por vezes hipocritamente, criticaram. Não faz sentido abordar a situação na Faixa de Gaza deixando de fora o que se passa na Cisjordânia.

A situação na Cisjordânia, mesmo que passe apenas de raspão nas notícias, é igualmente dramática. Todos os dias há operações militares israelitas nas cidades, aldeias e campos de refugiados palestinianos, quase todos os dias há detenções, feridos e mortos. A violência dos colonos israelitas é também diária: atacam palestinianos e destroem propriedade com total impunidade e até apoio do exército israelita, e com o incentivo de ministros e partidos políticos israelitas extremistas. Os colonatos crescem, tornando o território palestiniano numa espécie de arquipélago de bolsas de terreno onde os palestinianos estão presos, cercados por centenas de postos de controlo, sentindo a revolta e a raiva a crescer no peito.

Os alertas há muito que se fazem ouvir. Os mesmos que apenas tiveram pequenos gestos – por exemplo, o reconhecimento do Estado da Palestina – quando Gaza já escorria sangue e que consideravam que até 7 de Outubro de 2023 estava tudo bem, vão provavelmente ter a mesma displicência em relação à Cisjordânia. A manter-se a situação na Cisjordânia, ela conduzirá, inevitavelmente, à revolta dos palestinianos. A forma que essa revolta irá assumir ninguém pode prever, mas o pavio está a arder e o barril de pólvora está cada vez mais próximo. Se esse barril explodir, teremos as mesmas manifestações de surpresa e outros tantos a pensarem e a dizerem que tudo começa, de novo, nessa eventual explosão.

O plano em cima da mesa

Os vinte pontos do “plano Trump” estão construídos de uma forma em que tudo é exigido ao Hamas enquanto Israel apenas faz cedências depois do Hamas cumprir várias imposições. As grandes questões sobre o futuro da Faixa de Gaza estão todas dependentes de uma série de condições que devem ser cumpridas previamente e, mesmo assim, deixa fora da governança de Gaza todas as facções palestinianas, ficando um vazio quanto à representação política palestiniana nesse futuro. Até a Autoridade Palestiniana só poderá ter algum papel nesse futuro depois de cumprir um programa de reestruturação.

Todas estas limitações vão contar com uma Autoridade Temporária Transitória (constituída por “palestinianos qualificados e peritos internacionais”), que será supervisionada por um “Comité da Paz”, dirigido por Donald Trump, que terá outros chefes de Estado (não se sabe quais) e… Tony Blair. Estamos assim quase perante um recuo ao Mandato Britânico na Palestina, pós Império Otomano, quando as potências europeias consideravam que os povos árabes não sabiam autogovernar-se.

A ideia geral que o plano transmite é que os palestinianos parecem estar contaminados por algum vírus para o qual terão de ser tratados ou até reeducados para ficaram aptos a viver com alguma autonomia. Ninguém pergunta aos palestinianos o que querem e como querem fazer, mas parece haver muito quem saiba como fazer e o que fazer.

Apesar de tudo isto…

O Hamas ao dizer que liberta todos os reféns de uma só vez, “obrigou” Trump e Netanyahu a negociar. O Hamas faz uma cedência, mas impõe condições: quer negociar a retirada israelita, o desarmamento, o exílio dos seus dirigentes locais e outros aspectos do plano.

Os reféns são a questão principal para a sociedade israelita. Apesar de Trump ter dito que quer uma decisão rápida e de Netanyahu ter dito que o plano não é para negociar, nenhum deles teve a coragem de recusar negociações havendo a disponibilidade do Hamas para libertar todos os reféns de uma só vez. É a primeira vez que o Hamas aceita esta condição, porque até aqui tinha sempre proposto uma libertação faseada.

Dos vinte pontos do “plano Trump”, há dois que têm um sinal positivo, se assim se pode falar de direitos que têm de ser respeitados: Gaza não será anexada nem ocupada e os palestinianos não serão expulsos de Gaza, como Trump e Netanyahu chegaram a sugerir. O ponto 12 refere mesmo que os palestinianos serão encorajados a ficar.

Há ainda uma outra questão: os prisioneiros palestinianos que vão ser libertados por troca com os reféns israelitas. São cerca de 2 000, incluindo 250 que estão a cumprir penas de prisão perpétua. Mais uma vez, entre outros, o nome de Marwan Barghouti está na lista apresentada pelo Hamas. Israel, em processos anteriores, nunca aceitou libertar Marwan Barghouti, mas pode demorar muito até que surja uma nova oportunidade.

Pinhal Novo, 7 de Outubro de 2025

20h00

jmr

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