
Aguardava-se com natural expectativa o discurso da presidente da Comissão Europeia sobre o estado da União. Afinal, há uma guerra, desde 2014, na região oriental da Europa e uma outra na Faixa de Gaza. O discurso, dizem alguns analistas, foi “bem estruturado” e tocou os pontos essenciais. Acrescento que até teve emoção, daquela que puxa à lágrima, falando da criança ucraniana levada de Mariupol por soldados russos e depois resgatada pela avó (estiveram ambos no Parlamento a ouvir Ursula von der Leyen), e pediu o fim da guerra em Gaza: “pelo bem das crianças, pelo bem da humanidade, isto tem de acabar”. Fica sempre bem falar de crianças.
Foquemo-nos na parte do discurso sobre a guerra na Faixa de Gaza. Logo a abrir, um momento de… sei lá, espanto?: “Não há espaço nem tempo para adoptarmos uma postura contemplativa”. Em relação à guerra na Ucrânia, aceita-se o argumento, mas em relação a Gaza, Ursula von der Leyen adoptou durante quase dois anos essa postura contemplativa. Foram necessários quase dois anos para terminar a contemplação. Ursula von der Leyen descobriu agora que as imagens que chegam da Faixa de Gaza são “catastróficas”, que há “pessoas a morrer enquanto suplicam por comida” e que viu “mães com bebés sem vida ao colo”. Imagens que, segundo Ursula von der Leyen, abalaram “a consciência mundial”. Ursula von der Leyen demorou quase dois anos a sentir esse abalo. É, certamente, uma mulher de ferro.
Ursula von der Leyen refere-se ao que “está a acontecer em Gaza” quase como se fosse uma catástrofe natural, sem referir uma única vez que o governo de Israel e o seu principal responsável, Benjamin Netanyahu, são os responsáveis pelo que “está a acontecer em Gaza”. Refere-se várias vezes ao Hamas e à Autoridade Palestiniana, mas em relação ao lado israelita, nenhuma referência explícita, nada! Nem uma pequenina referência.
Quem ouviu e/ou leu as 23 páginas do discurso de Urlsula von der Leyen, há-de ter ficado a pensar que a guerra e a fome em Gaza são obra de um acaso da natureza ou de gente anónima; a construção de colonatos que separam território palestiniano também não têm autoria e os ministros extremistas não têm nome. Os colonatos nunca pararam a expansão, os colonos sempre têm atacado os palestinianos na Cisjordânia (agora com maior frequência e intensidade) e os ministros a que Ursula von der Leyen se refere (Smotrich e Ben Gvir), sem referir os nomes, há muito que incitam à violência e recusam a solução dois Estados. Aliás, o próprio primeiro-ministro israelita (e muitos outros líderes políticos e militares) há muito que recusa abertamente a solução dois Estados, mas Ursula von der Leyen nada disse sobre isto, apesar de insistir na retórica dessa solução “dois Estados”.
Ursula von der Leyen não percebe ou não quer perceber: tem sido a inacção, a cumplicidade e a tal “postura contemplativa” internacional que abriram caminho à desgraça e ao genocídio que ocorre na Faixa de Gaza e que em breve se poderá estender à Cisjordânia. Tem sido essa “postura contemplativa” que tornou praticamente inviável a solução dois Estados. Uma “postura contemplativa” que continua, apesar da indignação retórica.
Sanções, mas pouco…
Mas Ursula von der Leyen não desiludiu e apresentou algumas medidas para penalizar Israel. Chamemos-lhe sanções: cessar o apoio bilateral e os respectivos pagamentos (uns trocos…); sanções contra os ministros extremistas e colonos violentos, e suspensão parcial do Acordo de Associação nas questões relacionadas com o comércio. E pronto, é isto. É esta a forma encontrada para que a Europa lidere através do exemplo, como Ursula von der Leyen pretende e para que deixe de ter uma “postura contemplativa”. Quanto ao resto, medidas eventualmente mais duras, diz Ursula von der Leyen que os 27 têm dificuldade em entender-se.
Em linguagem futebolística, no relvado europeu, a Rússia ganha a Israel por 19-0, em termos de pacotes de sanções.
O lastro de Ursula
Para percebermos melhor a dificuldade da Comissão Europeia em relação à guerra na Faixa de Gaza, talvez seja útil recordarmos o facto de Ursula von der Leyen ter ido a correr para Israel logo a seguir ao 7 de Outubro para transmitir uma mensagem breve e incisiva a Benjamin Netanyahu: “Perante esta tragédia indescritível, só há uma resposta possível: a Europa está ao lado de Israel. E Israel tem o direito de se defender.”
No discurso sobre o Estado da União Ursula esqueceu-se de muitas coisas e nessa visita a Israel esqueceu-se de, pelo menos duas: a primeira foi a de que não estava mandatada pelos 27 para transmitir aquela mensagem a Netanyahu; a segunda foi ter esquecido de referir que o direito de defesa de Israel teria de estar vinculado ao direito internacional humanitário, o mesmo é dizer que a população civil teria de ser protegida e o acesso a serviços básicos não poderia ser cortado. Por essa altura já Israel punha em prática o corte a alimentos, combustível, água, electricidade, medicamentos, e por aí fora. Ursula não pode dizer que não sabia, porque os líderes israelitas anunciaram o que estavam a fazer. Nos dias seguintes, foram vários os políticos europeus que sublinharam essa pecha na mensagem de Ursula von der Leyen. Nathalie Loiseau, presidente da subcomissão de Defesa do Parlamento Europeu, foi a mais directa: “Esquece-se de uma mensagem importante: Israel deve respeitar o direito internacional humanitário”. E acrescentou: “Não compreendo o que é que a Presidente da Comissão tem a ver com a política externa da UE, pela qual não é responsável”.
O comissário responsável pela ajuda humanitária, o esloveno Janez Lenarcic, recordou a regra: o direito de Israel a defender-se só pode ser exercido mediante “a plena observância do direito internacional” (…) “os civis devem ser protegidos, as infraestruturas civis devem ser protegidas e o acesso seguro e irrestrito à ajuda humanitária deve ser garantido”.
Amizades preferenciais
Neste discurso sobre o estado da União, nem uma palavra sobre os direitos dos palestinianos, nem uma palavra sobre os crimes dos colonos israelitas na Cisjordânia, nem uma palavra sobre os mais de 11 000 presos palestinianos nas cadeias israelitas, grande parte deles em “prisão administrativa” sem acusação nem julgamento. Nada. Houve, sim, referências aos reféns israelitas – e bem – e a exigência da sua libertação, e referências aos 700 dias de dor e sofrimento que decorreram desde o ataque do Hamas a 7 de Outubro de 2023.
Este critério, afinal, talvez se perceba, porque a presidente da Comissão Europeia disse-o no discurso: “Sou amiga de longa data do povo de Israel”. Nada contra, a amizade é algo bonito e desejável. Mas, será que também é amiga do povo palestiniano? Ou esqueceu-se que estava a discursar no Parlamento Europeu enquanto presidente da Comissão Europeia?
A mesma Ursula von der Leyen que, em Outubro de 2022, referindo-se a ataques russos na Ucrânia, dizia que “os ataques dirigidos a estruturas civis com a clara intenção de cortar o fornecimento de água, electricidade, aquecimento a homens, mulheres e crianças com o inverno a aproximar-se, são actos de puro terror”, esqueceu-se agora de referir todos os cortes e ataques de Israel contra a população da Faixa de Gaza.
Para além de tudo isto, Ursula von der Leyen deseja “a erradicação do flagelo do Hamas”, acrescentando que “nunca poderá haver lugar para o Hamas – nem hoje nem no futuro”. Não se sabe se Ursula von der Leyen perguntou aos palestinianos o que querem do futuro, ou se tem informação privilegiada, mas imiscuir-se assim nos assuntos internos dos palestinianos parece pouco avisado.
E nesta previsão do futuro, deixou escapar um novo sinal do tal critério que é difícil perceber: Ursula von der Leyen não diz que o futuro governo de Israel não deverá contar com ministros extremistas nem com um primeiro-ministro que é procurado pelo Tribunal Penal Internacional. E se não diz, é porque isso não é importante para Ursula von der Leyen.
Assim vai o estado da União Europeia.
Pinhal Novo, 10 de Setembro de 2025
jmr
19h00
