
Não é raro estarmos perante situações e conflitos que consideramos estarem em momentos decisivos, os chamados “momentos da verdade”. Momentos em que as decisões a tomar podem marcar o futuro de forma definitiva ou, pelo menos, a longo prazo.
A Palestina está a viver um momento assim. Não apenas quanto ao cessar-fogo, mas principalmente quanto ao futuro dos palestinianos e de um Estado da Palestina. Não é apenas a guerra na Faixa de Gaza, mas também a (guerra na) Cisjordânia e o Estado da Palestina, prometido e vertido em decisões das Nações Unidas, mas sempre combatido, mesmo que muito dissimuladamente, por todos os governos de Israel.
Hoje, percebemos como o antigo líder palestiniano, Yasser Arafat, foi enganado nos Acordos de Oslo. Os Acordos tiveram a virtude de fazer calar as armas durante algum tempo, mas a maior prova de que foi um mau acordo está no facto de não ter acabado com o conflito. Foi um acordo com muitas pontas soltas, muitas questões essenciais que não ficaram devidamente estabelecidas e que assentava na boa-fé, principalmente do lado israelita, porque era quem tinha o poder concreto no terreno. Foi um acordo injusto para os palestinianos e, diria que, de forma inevitável, deu no que deu.
Ao tempo, Yasser Arafat foi muto criticado por várias facções palestinianas, mas o velho líder – disseram outros – estava cansado da guerra e do exílio, e quis acreditar que a paz era possível.
Tudo piorou
Mais de trinta anos depois dos Acordos de Oslo, a Faixa de Gaza está destruída e chora quase 50 000 mortos nos últimos 15 meses; a Cisjordânia para lá caminha com quase mil mortos no mesmo período, campos de refugiados ocupados pelo exército israelita, mais de 40 000 deslocados e quase toda a Cisjordânia trancada por checkpoints. Pela primeira vez desde 2002, os tanques de guerra entraram em Jenin. Os colonatos não param de crescer, a terra palestiniana é paulatinamente confiscada na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental.
Em Israel está instalado o governo mais à direita que alguma vez esteve no poder; nos Estados Unidos, Donald Trump mora na Casa Branca e é definido pelo primeiro-ministro israelita como o melhor amigo que Israel alguma vez teve; a Autoridade Palestiniana, em Ramallah, impotente, não tem o respeito dos palestinianos e não tem poder nem capacidade para defender a mais frágil das oliveiras…
É este o cenário quando se discute no Cairo a segunda fase do acordo de cessar-fogo para a Faixa de Gaza. A primeira fase de 42 dias termina a 1 de Março e as negociações para a segunda fase deviam ter começado há mais de duas semanas. Israel não quis e só a 27 de Fevereiro enviou uma equipa de negociadores para o Cairo.
Sobre este acordo, nenhuma das partes revelou o texto oficial e o que se sabe é o que vai sendo salpicado na comunicação social através de declarações dos mediadores, de Israel e do Hamas.
E se aquilo que dizem bate certo com o que está, de facto, no acordo, então também sabemos que ele é uma quase cópia do texto que teve a concordância do Hamas em Maio de 2024 e que Benjamin Netanyahu nunca quis assinar.
O que está em causa
Para a segunda fase do Acordo de cessar-fogo há duas questões principais: a libertação dos 59 reféns ainda em Gaza e a retirada completa do exército israelita do território palestiniano, incluindo o corredor de Filadélfia na fronteira da Faixa de Gaza com o Egipto.
Problema: por um lado, o Hamas não irá concordar em libertar todos os reféns sem ter uma garantia absoluta de cessar-fogo, de modo que Israel não possa retomar os ataques a Gaza; por outro lado, Israel colocou a fasquia na derrota total do Hamas, evitando que possa continuar a governar Gaza, e essa derrota ainda não foi conseguida.
Em termos de presença no território, como já foi possível perceber após 15 meses de guerra, o Hamas mantém-se organizado e ainda tem algum controlo do território. Quanto à governação de Gaza no pós-guerra é já uma falsa questão porque o próprio Hamas (na conferência de Pequim, que juntou todas as facções palestinianas, em Julho de 2024) disse que não quer governar Gaza nem estar representado no futuro governo, quer apenas um governo formado por pessoas a quem o movimento palestiniano reconheça qualidades para defender os interesses palestinianos.
O problema maior será também o “Plano Trump” de limpeza étnica da Faixa de Gaza. Israel assume que é um bom plano fazer uma limpeza étnica (apesar de não a designar assim) enquanto negoceia o cessar-fogo em Gaza. Perante esta intenção, será difícil aceitar que o Hamas possa ser acusado de alguma coisa em termos das negociações que estão a decorrer. São negociações em que um das partes ameaça exterminar a outra e, simultaneamente, “limpar” os palestinianos do território palco do conflito. Está bem de ver que o Hamas não vai aceitar entregar os reféns sem garantias de que nenhuma destas intenções será concretizada.
Liga Árabe
A primeira fase do Acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas termina hoje, 1 de Março. Aqui chegados, este é o momento da verdade para a Palestina e é também o momento da verdade para o conjunto dos países Árabes. Desde o início que estes países rejeitam a ideia de uma Riviera na Faixa de Gaza, mas foram desafiados pelos Estados Unidos para apresentarem um plano alternativo. É isso que se espera da Cimeira da Liga Árabe agendada para 4 de Março, no Cairo. Entre estes países estão dois (Jordânia e Egipto), os únicos países árabes com Tratados de Paz assinados com Israel e que são também os que maior apoio económico e militar recebem dos Estados Unidos. Esta circunstância pode pesar na decisão árabe, mas aí poderão entrar os países árabes mais abastados para superarem um eventual corte do apoio norte-americano ao Egipto e à Jordânia.
A questão palestiniana tem sido uma parte substancial da retórica árabe, mas pouco tem passado disso. Em termos concretos, os países árabes nunca tiveram uma posição forte face a Israel no sentido de forçar o reconhecimento dos direitos dos palestinianos e a aplicação das resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Chegou a hora de dizerem o que para eles é mais importante: a causa palestiniana, o Estado da Palestina e a consequente dignidade árabe ou os negócios e acordos com países ocidentais que reforçam o poder interno dos diferentes líderes árabes, nomeadamente também os Acordos de Abraão que alguns deles já assinaram com Israel.
Se a Liga Árabe falhar na construção de uma solução para a Faixa de Gaza que garanta os direitos dos palestinianos e se não mostrar firmeza perante os objetivos israelitas de anexação da Cisjordânia, o sonho de um Estado da Palestina vai morrer. E morre no Cairo, com a Liga Árabe a não poder ser levada a sério!
Reféns e prisioneiros
Os números oficiais do governo de Israel referem que há, neste momento, 59 reféns em Gaza. Israel acredita que 24 estão vivos, os outros 35, provavelmente, estão mortos.
Eram 251 reféns do 7 de Outubro, mais dois civis que tinham entrado em Gaza (em 2014 e 2015) e o cadáver de um soldado israelita por devolver há cerca de uma década.
Na primeira fase do Acordo de cessar-fogo, foram libertados 33 reféns israelitas por troca com cerca de 1 700 prisioneiros palestinianos (estavam previstos cerca de 1 900).
Para a segunda fase do cessar-fogo, a libertação dos reféns ainda na posse dos movimentos palestinianos será feita por troca com um número de prisioneiros palestinianos ainda por determinar.
