
A guerra nunca foi algo bonito de se ver. Sempre as partes envolvidas tentaram tirar partido de momentos especiais, principalmente quando se trata de momentos mais emotivos, nomeadamente quando envolvem crianças e, no caso de Gaza, quando se trata da devolução de cadáveres. No entanto, convém reter alguns aspectos do actual cessar-fogo e da troca reféns/prisioneiros.
Estamos perante inimigos com capacidades totalmente diferentes. De um lado Israel, um Estado e um exército organizado, com um enorme poder militar e recursos tecnológicos, com apoio externo, que bombardeou ininterruptamente, durante 15 meses, um território de 360 quilómetros quadrados com mais de dois milhões de habitantes e onde não há pontos de fuga; do outro lado, milícias organizadas, é certo, mas sujeitas aos intensos bombardeamentos inimigos, que ficaram com as capacidades militar e logística bastante enfraquecidas, com reduzida capacidade de defesa e que, nesse contexto, para além de tentarem garantir a protecção própria tinham a obrigação de proteger os reféns israelitas.
Perante os intensos bombardeamentos israelitas, quando até os líderes do Hamas e da Jihad Islâmica, em Gaza – os que supostamente poderiam ter melhor protecção – foram mortos, não é difícil imaginar como terá sido difícil aos movimentos palestinianos conseguir proteger os reféns. Aliás, o Hamas não se cansou de alertar que os bombardeamentos israelitas colocavam em perigo a vida dos reféns e já tinha dito que mais de 30 reféns (dos que ainda estão em Gaza) estão mortos.
Shiri, Ariel e Kfir
Na última quinta-feira (20 de Fevereiro) o Hamas entregou quatro cadáveres. Entre eles, três deveriam ter sido da família Bibas: a mãe, Shiri Bibas, Ariel e Kfir (4 anos, e oito meses e meio, respectivamente, quando foram feitos reféns – 7 de Outubro de 2023). Qualquer ser humano se sente tocado quando as crianças são vítimas da guerra. Quando toda uma família é atingida, a emoção é ainda maior. Neste caso, há muito tempo que o Hamas tinha anunciado a morte da mãe e dos dois bebés da família Bibas, alegadamente durante um desses ataques israelitas. Não se sabe se foi assim ou não, mas é verosímel que possa ter sido mesmo assim. Apesar da informação avançada pelo Hamas, o governo israelita nunca confirmou a morte dos bebés, alimentando uma incerteza que tornou ainda mais dolorosa a confirmação e o momento em que os cadáveres dos bebés foram entregues.
Narrativas
O exército israelita veio dizer que “com base em indicadores de diagnóstico”, as crianças “foram brutalmente mortas em cativeiro em novembro de 2023 por terroristas palestinianos”, acrescentando que quem os matou agiu “com as suas próprias mãos”.
Benjamin Netanyahu, veio logo denunciar “assassinatos horríveis” cometidos por “monstros”.
Estamos perante duas narrativas opostas: o Hamas diz que a mãe e as crianças Bibas morreram vítimas de um bombardeamento israelita; o governo de Israel diz que foram assassinadas pelo Hamas. Ficamos a aguardar provas. Conhecendo as práticas do Hamas e de Benjamin Netanyahu, cada leitor que decida em quem acredita.
Na mesma entrega de cadáveres era suposto ter sido entregue o corpo da mãe das crianças, mas Israel diz que o corpo entregue foi o de uma mulher palestiniana. O Hamas admitiu de imediato a possibilidade de ter havido um erro/troca e (à hora a que escrevo – 01h00, 22 de Fevereiro) já entregou à Cruz Vermelha Internacional o cadáver da mãe dos bebés.
Netanyahu aproveitou esta questão e prometeu logo agir para garantir que o Hamas “paga o preço por esta violação cruel e perversa do acordo”.
Depois de tudo isto, a família Bibas não deixou Netanyahu sem resposta e acusou o primeiro-ministro israelita de ter “abandonado” os seus familiares no dia do ataque do Hamas, a 7 de outubro de 2023, e durante o seu cativeiro.
Proibir a alegria
Desde que começou a troca de reféns israelitas por prisioneiros palestinianos que o governo israelita se queixa das “encenações” do Hamas no momento da libertação dos reféns. É essa a narrativa que prevalece. Mas a esta narrativa devia acrescentar-se o contexto da libertação de prisioneiros palestinianos, com o exército de Israel a proibir o ajuntamento de palestinianos junto das prisões de onde são libertados, a proibir festas para receber os prisioneiros nas cidades e aldeias palestinianas, a ameaçar as famílias dos prisioneiros e a avisá-las dessas proibições, ou a ameaçar intervir quando um pequeno grupo de pessoas dá as boas-vindas a um prisioneiro mesmo que isso aconteça em local fechado. Ao mesmo tempo que proíbe qualquer manifestação de alegria aos palestinianos, o próprio governo de Israel divulga as imagens dos reencontros felizes entre reféns libertados e as respectivas famílias.
Dignidade
As vozes que se levantam agora em defesa da dignidade dos reféns que são libertados pelos movimentos palestinianos de Gaza, nada disseram quando Israel devolveu a Gaza dezenas de cadáveres, dentro de sacos azuis, fechados com braçadeiras de plástico, transportados por um camião com um contentor de mercadorias. Foram levados para Gaza como se fossem “sacos de batatas”, sem qualquer tipo de identificação nem informação sobre onde e quando tinham sido mortos. Sem dignidade. Imaginemos a narrativa que estaria a correr mundo se o Hamas tivesse devolvido corpos de reféns israelitas do mesmo modo.

De maneira completamente diferente, cada um dos cadáveres israelitas foi transportado por quatro combatentes, dentro de caixões fechados, e entregues à Cruz Vermelha Internacional, que por sua vez envolveu-os em panos brancos e transportou-os para Israel. A transferência dos corpos foi registada em documentos assinados por representantes dos movimentos palestinianos e da Cruza Vermelha Internacional, à vista de todos. Porquê? Para que o governo de Israel não pudesse vir dizer que não tinham sido entregues ou que o número de cadáveres era outro.
Com os cadáveres palestinianos, o governo de Israel limitou-se a enfiá-los em sacos e levá-los num camião de mercadorias para o outro lado da fronteira. Em termos de dignidade, estamos conversados. Aos olhos de alguns palestinianos, a Cruz Vermelha Internacional não está a agir como deve. Daí este cartoon, da autoria de Mahmoud Abbas, criador de conteúdos digitais para a Al Jazeera, formado na Universidade de Al Azhar, em Gaza.

As “encenações”
Se tivermos em conta os reféns vivos libertados até agora em seis momentos, com excepção de uma situação em que houve algum descontrolo – ainda assim sem nunca estar em causa a segurança dos reféns – a grande preocupação do Hamas parece ter sido apenas uma: mostrar os reféns em condições de saúde aparentemente aceitáveis, tendo em conta os longos meses de cativeiro e as dificuldades que Gaza atravessou em termos de condições de vida. O Hamas quis dizer que teve o cuidado possível com os reféns até porque era do próprio interesse do Hamas salvar a vida dos reféns. Alguns estavam visivelmente debilitados, mas em relação a outros foram as próprias famílias e os médicos a reconhecer, estavam em boas condições de saúde. Foram conduzidos com cuidado nas cerimónias de libertação, estavam decentemente vestidos e receberam “lembranças” dos movimentos palestinianos. Para quem escrutinou cuidadosamente as imagens desses momentos não foi difícil aperceber-se de momentos em que os reféns tiveram gestos amistosos para com os palestinianos armados que os acompanhavam. Síndrome de Estocolmo, haverá quem diga. Talvez.
Mais uma vez, a comparação entre os prisioneiros palestinianos libertados por troca com os reféns israelitas é inevitável. Muitos palestinianos libertados em condições absolutamente deploráveis, fisionomias cadavéricas devido ao agravamento das condições nas prisões, principalmente depois do 7 de Outubro de 2023. Foi o próprio ministro Bem Gvir a anunciar que a alimentação foi drasticamente reduzida, o tempo de recreio cortado, os banhos reduzidos, roupas quentes quase eliminadas, a tortura como regra diária.
Nestas duas realidades há uma diferença substancial de contexto: enquanto em Gaza era impossível dar melhores condições aos reféns israelitas, em Israel as condições a que os prisioneiros foram sujeitos resultaram apenas de uma vontade de punição e vingança.
PS – Que não seja visto nesta argumentação qualquer defesa de atrocidades em que a guerra é fértil. Mas é nosso dever tentar ler os factos com frieza e distanciamento, sem alinhar acriticamente na narrativa das máquinas de comunicação mais poderosas.
