
Com o Médio Oriente a “arder” e dois acordos de cessar-fogo em andamento, aos trambolhões, é certo, mas a fazerem algum caminho, Donald Trump resolve deitar gasolina na fogueira. Depois de dizer que “Gaza é interessante. É uma localização fenomenal. No mar, o melhor clima… Podiam fazer-se algumas coisas fantásticas com Gaza”, o presidente dos Estados Unidos vem sugerir que os palestinianos de Gaza devem ir para a Jordânia e para o Egipto: “Provavelmente um milhão e meio de pessoas. Nós, simplesmente limpamos tudo e dizemos, ‘Acabou’”, disse Trump, citado pelas agências internacionais de notícias. Nunca se tinha ido tão longe num incentivo que não pode ser lido a não ser como de limpeza étnica através da deportação ou transferência forçada. Não será de admirar que a Justiça Internacional venha a ter trabalho nos próximos tempos.
Jordânia e Egipto
Depois de ter retomado o fornecimento de bombas com cerca de uma tonelada cada (“porque os israelitas pagaram”, disse Trump), que Joe Biden cancelara, o presidente norte-americano sabe que esta ideia de “limpar” Gaza de cidadãos palestinianos tem forte apoio em alguns sectores da sociedade israelita. Não por acaso, Ben Gvir e Smotrich, os dois ministros mais extremistas do governo de Netanyahu, já saudaram a proposta: “excelente ideia!”.
Donald Trump aponta para a Jordânia e Egipto como locais de destino dos palestinianos da Faixa de Gaza. São países que têm fronteira com Israel e com os territórios palestinianos, e foram os únicos países árabes a assinar Tratados de Paz com Israel. O Egipto, em 1979, e a Jordânia, em 1994. Mas nem um nem outro, durante esta guerra de Gaza, aceitaram receber palestinianos. Muitas vezes se falou dessa possibilidade, mas a resposta foi sempre negativa. E agora, depois da proposta de Trump, continua a ser negativa.
Nakba continua
Os palestinianos já disseram que de Gaza não vão para lado nenhum. Os movimentos palestinianos (Hamas e Jihad) que têm estado em guerra com Israel já o disseram, a Liga Árabe também, e até a própria Autoridade Palestiniana que tem apostado tudo no apoio de Washington viu-se obrigada a contrariar o “amigo”, com Mahmoud Abbas a dizer que condena “qualquer projeto” que vise deslocar os palestinianos de Gaza.
A história mostra-nos que os palestinianos sabem do que estão a falar. Os colonos e supremacistas israelitas também. Trump não sabemos e talvez para ele seja apenas uma oportunidade de negócio imobiliário, mesmo que à custa da vida e do futuro de milhões de pessoas. Os projectos para Gaza existem e nunca foram escondidos durante os 15 meses de guerra.
A História
Ilan Pappé, historiador israelita, no livro “Israel versus Palestina, a mais breve história do conflito”, recentemente publicado em Portugal, resume em três parágrafos a experiência (Nakba/a Catástrofe) de 1948:
“Para onde foram todos os palestinianos expulsos? Israel conseguiu expulsar os palestinianos do Leste para a Cisjordânia ocupada e a Transjordânia. Os do Norte foram empurrados para a Síria e o Líbano. Mas no Sul, o Egipto recusou-se a abrir as suas fronteiras aos palestinianos.
Já no fim da guerra, Israel «resolveu» este problema ao criar aquilo que agora conhecemos, de forma tão dolorosa, como a Faixa de Gaza. Foi um pequeno rectângulo obtido do que era a Palestina histórica (2% do país). Foi criado para receber centenas de milhares de palestinianos expulsos das áreas do Centro e Sul da Palestina. À época era o maior campo de refugiados do Mundo. Hoje ainda o é.
É difícil imaginar hoje, mas, na época, Gaza era uma cidade cosmopolita na Via Maris, uma antiga rota do comércio do Cairo a Damasco, casa para algumas das mais antigas comunidades cristãs e judaicas do Mundo.”
Empurrados para a Faixa de Gaza em 1948, expulsos das aldeias e cidades palestinianas, os descendentes dos palestinianos desse tempo são agora empurrados para fora deste território cuja pertença lhes é reconhecida pelo Direito Internacional.
Falta saber se a Jordânia e o Egipto vão ser firmes na recusa à proposta de Donald Trump e se o mundo árabe, por uma vez, consegue, de facto, apoiar os palestinianos. Falta saber o que vai fazer a chamada “comunidade internacional” perante este desmando de Trump. O que vão fazer as Nações Unidas? O que podem fazer? E a União Europeia? Se nada me escapou, até agora impera o silêncio.
Índios e palestinianos
Conhecemos a história dos Estados Unidos, o genocídio dos povos indígenas e sabemos como até há pouco tempo Hollywood nos “vendia” a versão do herói cowboy que combatia os índios, os maus da fita. Os norte-americanos não podem ser responsabilizados por esse passado, mas a Donald Trump apenas parece faltar o coldre preso à perna, uns safões e um cavalo, para ficar completa uma personagem desse tempo. Tudo isto não justifica a proposta de Trump em relação à Faixa de Gaza, mas mais difícil de aceitar é que os representantes de um povo (e também parte dele) que sofreu com os “cowboys” da Alemanha nazi e da inquisição, possa admitir este tipo de proposta que coloca em causa a existência de um outro povo.
Honra lhe seja feita, Donald Trump é coerente. Está a cumprir tudo o que prometeu e quem acompanhou Trump em Davos, durante os 45 minutos em que falou e respondeu a perguntas, ficou a saber que é para continuar. O problema é que essa coerência vai levar-nos a um mundo muito pior do que aquele – que já não é bom – em que vivemos.
Trump é a expressão despudorada da arrogância e também de um Realismo extremista, que apenas mede o poder de um Estado em termos de poder económico e militar. Nem mais, nem menos, apenas isso. Com Trump, o multilateralismo como instrumento de paz e desenvolvimento, é letra morta. E tudo é negócio, claro está, com Trump a ditar as regras.
*al-Nakba al-Mustamirra, assim designam os palestinianos a contínua limpeza étnica da Palestina.
