
A Síria não foge à regra da complexidade dos países do Médio Oriente. Existem variantes de origem étnica, religiosa e política, agravadas por uma guerra que começou em 2011 e um regime autoritário da família Assad que dominou o país desde 1970. Desde o golpe de Estado que levou os Assad ao poder até que o último Assad fosse obrigado a fugir de Damasco e a refugiar-se na Rússia, fica a pesada herança de um país com uma economia em ruínas, um tecido social esfrangalhado, grupos armados que vão ter dificuldade em encontrar um objetivo que possa ser comum e sementes de ódio que são caminho fácil para acções de vingança. É com este lastro que a Síria terá de trabalhar o futuro depois do virar de página.
Para além disso, a Síria é também alvo do interesse de países vizinhos. Potências regionais como o Irão, Turquia e Arábia Saudita, querem influenciar o poder de Damasco. Foi o que fizeram até agora e é o que vão continuar a fazer. Não esquecendo a Rússia e os Estados Unidos.
Fazer política “com pinças”
O “tabuleiro de xadrez” sírio exige que cada peça seja movida com cautela extrema, mas é legítimo admitir que isso não vá acontecer. Os diferentes grupos que se uniram com o objetivo de derrubar Assad, terão visões diferentes para o futuro da Síria e será na conjugação, e no confronto, dessas visões – quiçá incompatíveis – que a Síria terá de encontrar um novo rumo. Ainda assim, depois de uma longa ditadura e de quase 14 anos de guerra, o Mundo não pode exigir o impossível a uma sociedade destroçada pela guerra, com centenas de milhares de mortos, desaparecidos e refugiados, famílias desfeitas e vidas que apenas tentaram sobreviver. O passado pode servir de lição para que as armas se calem de vez? Pode, mas sabemos que não é assim tão simples.
Influências externas
A Turquia combate os curdos e quer um governo sírio que não lhes conceda qualquer tipo de autonomia ou reforço de identidade; para Israel, o afastamento de Assad (aliado do Irão) é uma vitória e logo aproveitou o vazio de poder para aniquilar toda a capacidade militar síria, ocupando ilegalmente a zona tampão junto aos Montes Golan e entrando em localidades sírias, com manifesta intenção de ficar; o Irão não vai querer perder toda a influência que tinha na Síria e vai certamente, através do Iraque, tentar manter laços estreitos com Damasco; a Arábia Saudita obteve uma meia vitória com o afastamento de Assad (aliado do Irão), mas não vai querer que a Turquia ganhe peso regional; a Rússia, aliada fundamental para Assad ter mantido o poder, vai ainda assim querer manter a base naval de Tartous e a base aérea de Khmeimim, duas bases essenciais para a presença e influência de Moscovo no Médio Oriente, Mediterrâneo e Norte de África; os Estados Unidos, titubeantes no papel que querem ter no Médio Oriente, vão defender Israel e opor-se a tudo o que possa ser considerado perigoso para Telavive.
Desde logo, a questão que parece mais complicada de resolver, porque envolve dois países NATO, é a questão curda. A Turquia, apesar da recente (e aparente) aproximação ao líder curdo Abdullah Öcalan (líder do PKK, preso há 25 anos), permitindo agora que fosse visitado na prisão, quer os curdos destituídos de qualquer possibilidade de autonomia ou independência e joga também com os refugiados sírios que tem no seu território – árabes na sua maioria – que gostaria de ver regressar à Síria, mas fixando-os em território curdo, numa estratégia de arabização do território, anteriormente seguida por Saddam Hussein, no Iraque. A Turquia apoia directamente as milícias do chamado Exército Nacional Sírio e tem tropas no nordeste da Síria (zona curda). Os combates entre milícias pró-turcas e curdos têm sido frequentes e o número de vítimas elevado. Mas, os Estados Unidos têm apoiado os curdos e, apesar de anteriores traições, parecem ser o único apoio que os pode proteger, seja da Turquia, seja de um eventual governo hostil em Damasco.
Mosaico complicado
Quase 14 anos de guerra, incluindo a presença do Estado Islâmico, transformaram a Síria num tabuleiro onde se movimenta uma enorme quantidade de milícias, com as mais diversas obediências, que celebram alianças à mesma velocidade com que desfazem alianças anteriores. O segredo para dar alguma estabilidade à Síria num futuro próximo estará certamente na distribuição de poder entre as muitas facções e grupos rebeldes que conquistaram Damasco. A rapidez com que os até agora rebeldes construíram um governo é sinal de que quiseram evitar um vazio de poder. Por um lado indicaram os nomes com quem a comunidade internacional pode dialogar; por outro lado, evitaram que o país resvalasse para o caos.

Até agora, parece intocável a liderança de Abu Mohammad Al Golani, mas o Hayat Tharir Al Sham não pode aspirar, e não tem capacidade, para controlar todo o território sírio, precisando claramente de estabelecer alianças e acordos com os grupos aliados. Essa não será uma tarefa fácil, não tanto pela distribuição de lugares, mais pelas linhas orientadoras para construir a nova Síria. Grupos de maior ou menor pendor religioso, grupos que sofrem influência e têm dependência de actores externos, grupos mais nacionalistas e outros que têm uma perspectiva mais abrangente da guerra que têm travado, grupos que defendem uma Síria mais inclusiva e outros mais sectários. Sempre foi difícil numa mudança de regime após uma guerra prolongada levar os vencedores a abandonarem as armas e a integrarem-se numa nova realidade. A Síria não vai fugir à regra. É um processo lento, com avanços e recuos, e com o perigo sempre latente de haver um descarrilar do processo que leve o país a entrar numa nova guerra. Todas as possibilidades estão em aberto, mas há uma questão fundamental: a Síria precisa de apoio externo urgente.
Ainda terroristas?
Os Estados Unidos retiraram rapidamente a recompensa de 10 000 000 de dólares para a captura de Abu Mohammad Al Golani, mas falta retirar o Hayat Tharir Al Sham da lista de organizações terroristas. Aliás, será uma grande hipocrisia se tal não acontecer, mesmo considerando as dúvidas legítimas sobre o verdadeiro caracter da organização que teve origem na Al Qaeda.
Abu Mohammad Al Golani, líder do Hayat Tharir Al Sham, em entrevista à televisão saudita Al Arabiya, promete eleições na Síria dentro de quatro anos. Disse Golani que antes das eleições terá de ser feito o recenseamento da população e a Constituição da Síria terá de ser revista e adaptada aos novos tempos. É muito tempo, dirão, mas talvez seja o tempo necessário para que o país ganhe alguma estrutura administrativa e para que, politicamente, as diferentes facções se possam organizar.
O novo Exército
O regime caiu, mas não desapareceu. É certo que Bashar Al Assad, fugiu para a Rússia, mas o irmão Maher Al Assad, o comandante militar mais poderoso, não se sabe onde está (terá escapado através do Iraque…), e muitos outros destacados dirigentes do regime desapareceram. Alguns oficiais foram apanhados e outros que fugiram para o Líbano foram entregues por Beirute às novas autoridades sírias, mas não será de estranhar que a caça ao homem continue nos próximos tempos. Até agora apenas uma grande figura foi detida: Mohammed Kanjo Al Hassan, alegadamente responsável por sentenças de morte na prisão de Sydnaya e chefe da justiça militar do anterior regime.
A guerra de quase 14 anos e os 53 anos de poder da família Assad deixaram feridas muito profundas e contas por acertar. As prisões do regime são um retrato da imensa crueldade de que os sírios foram vítimas. Quem por lá passou e sobreviveu ou as famílias dos que lá morreram ou desapareceram querem ver os responsáveis julgados e condenados. Não há atenuantes para quem trata seres humanos da maneira que foram tratados em Saydnaya ou na “Secção Palestina”. Num país a viver um turbilhão de emoções e a sacudir-se de uma ditadura, é quase impossível evitar actos de vingança, antes que seja possível levar os responsáveis do regime a julgamento.

Uma vertente de extraordinária importância para a nova Síria será o novo Exército. As novas autoridades têm dito que todos os antigos militares que não tenham “sangue nas mãos” poderão integrar as novas forças armadas sírias. O processo está em marcha e têm sido muitos a alistar-se, mas construir um verdadeiro exército sírio pode enfrentar uma panóplia de obstáculos. Desde logo porque muitos dos combatentes do Hayat Tharir al Sham (HTS) são estrangeiros; depois, porque há locais, por exemplo no Sul do país, controlados por milícias locais agrupadas na Al Mousalah (“a reconciliação”), que receberam bem o HTS, mas são elas que controlam o território; depois também porque não se percebe como é que poderão ser integradas as milícias pró-turcas (“Exército Nacional Sírio”) que combateram o regime de Assad mas que, claramente, recebem ordens de Ankara; e depois ainda porque os curdos, que construíram uma autonomia no nordeste da Síria, na sequência da quase ausência do regime de Assad na região e depois de combates fratricidas contra o Estado Islâmico, não vão abrir mão dessa autonomia e do seu poder militar (as “Forças Democratas da Síria” integram as milícias curdas e também milícias árabes) sem terem garantias de que as suas principais aspirações serão respeitadas. Aliás, os curdos são, neste momento, a força militar com mais capacidade, disciplina e organização. Os curdos sabem bem o que é a traição – principalmente quando se fala de Estados Unidos – e não vão deixar escapar por entre os dedos o que conquistaram à custa de enormes sacrifícios e sangue derramado. O futuro não se afigura fácil, mas pelo menos será um futuro sem Assad.
