
Após 10 meses de guerra na Faixa de Gaza, quase 40 000 mortos, mais de 90 000 feridos e um território completamente arrasado, o Hamas não claudicou, continua a combater as forças israelitas no terreno e escolheu Yahya Sinwar para suceder a Ismail Haniyeh, assassinado em Teerão num ataque que Israel não assume mas em relação ao qual nenhum analista expressa grandes dúvidas.
O conteúdo destas linhas iniciais é factual. As seguintes são de análise.
A escolha de Sinwar, já desde 2017 líder do Hamas na Faixa de Gaza, é um sinal claro de que a linha política do movimento palestiniano não sofre alteração e que um eventual acordo de cessar-fogo, para libertação dos reféns israelitas, terá de passar pelas condições que o Hamas apresenta para colocar a assinatura no papel: a guerra deve terminar, as forças israelitas devem sair da Faixa de Gaza e os prisioneiros palestinianos devem ser libertados. São as condições que o Hamas colocou na mesa desde a primeira hora.
Não há qualquer motivo para pensar que a linha de orientação do Hamas vai tornar-se mais radical. Desde o início desta guerra na Faixa de Gaza e das negociações entre Israel e o Hamas, sempre a opinião de Sinwar Yahya foi determinante para as posições e propostas que o Hamas levou para a mesa das negociações. Sinwar, líder no terreno, sabia o que devia ser negociado, em que termos, e tendo em conta as condições de resistência. À liderança política no exterior competia negociar através dos mediadores, sabendo que não haveria força à mesa das negociações se não houvesse alinhamento com as forças do Hamas no terreno e com a difícil situação militar.
Mas a escolha de Yahya Sinwar é muito mais do que isso: é o pior que podia acontecer a Benjamin Netanyahu porque Sinwar é a “besta-negra”, considerado o principal mentor do ataque de 7 de Outubro, um ataque que, para além do número de vítimas, significou a humilhação do governo e do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, dos serviços de informação e das forças de defesa de Israel. A nomeação de Yahya Sinwar significa também que o poderoso exército israelita anda há 10 meses a tentar apanhar/matar Yahya Sinwar sem conseguir chegar ao objetivo. Aliás, ninguém nos serviços de segurança e nas forças de defesa israelitas deve conseguir explicar como é mais fácil assassinar Ismail Haniyeh, em Teerão, do que matar Sinwar na Faixa de Gaza, um pequeno território, completamente cercado e onde o Hamas dá sinais de reorganização em locais onde, supostamente, devia ter sido aniquilado. Não há quem não perceba que Israel não vai conseguir acabar com o Hamas, sendo que pode, evidentemente – já o fez – reduzir substancialmente a capacidade militar do movimento palestiniano. Assim sendo, a grande vitória de Netanyahu, poderia ser “mostrar a cabeça” de Sinwar como sinal de vitória na guerra, mas para isso terá de encontrar o agora líder do Hamas. A escolha de Yahya Sinwar é, assim, um desafio ainda maior para Netanyahu, porque a mentalidade supremacista do primeiro-ministro israelita considera a escolha de Yahya como uma afronta e um supremacista não admite afrontas.
Até pode acontecer que o exército israelita consiga, muito em breve, eliminar o novo líder do Hamas, mas o que esta nomeação também revela é que não é a eliminação dos líderes que afecta a dinâmica de movimentos com estas características. O Hamas sabe que Sinwar tem a cabeça a prémio, podia ter escolhido outro líder mais resguardado e que dirigisse o movimento a partir do exterior dos territórios palestinianos, mas não o fez.
Israel já assassinou três líderes do Hamas, tentou também assassinar (chegou a envenená-lo) Khaled Meshaal (que já liderou o movimento) e muitos elementos em lugar de destaque na hierarquia política e militar do Hamas. Nada alterou a dinâmica do Hamas.
Pode haver quem não concorde e acuse o Hamas de tudo e mais alguma coisa, mas antes disso talvez fosse bom pensar: e se fosse ao contrário? E se tivesse sido o Hamas a matar o principal líder israelita? O que estariam a dizer os líderes do chamado mundo ocidental? Ou se fosse o Hamas a continuar durante 10 meses uma carnificina como aquela que está a ter lugar em Gaza? O que diriam os líderes do chamado mundo ocidental?
Haverá quem considere que não se pode comparar um movimento “terrorista” com governantes “eleitos democraticamente”. O raciocínio até pode ser esse, mas isso é um olhar “apenas com um olho”, porque o outro olho, o palestiniano, olha para o Hamas como um movimento de resistência e de libertação, e olha para as forças israelitas como forças de ocupação. Não há volta a dar. E é nesta base que tem de ser construída a paz.
