O fim da impunidade e as perguntas certas

Benjamin Netanyahu (PM de Israel) e Yoav Gallant (Ministro da Defesa de Israel); Yahya Sinwar (líder do Hamas em Gaza); Ismail Haniya, líder do Hamas; Mohammed Deif (comandante do braço armado do Hamas), a partir de cima, à esquerda, no sentido dos ponteiros do relógio. Para todos eles, o Procurador do TPI pede mandados de captura.

Os milhares de mortos na Faixa de Gaza é algo demasiado escandaloso para que a retórica da política internacional pudesse ficar alheada. A indiferença revelou-se impossível, mas ainda assim, se a retórica mudou um pouco em relação a Israel, em termos concretos, em termos de acção e de substância, nada mudou. Com excepção de “sanções” contra colonos israelitas, acusados de actos violentos contra palestinianos na Cisjordânia, nada mudou. Os aliados ocidentais, habituais fornecedores de armas a Israel, mantêm o fluxo; as organizações europeias a que Israel pertence, mantêm uma relação inalterada; as visitas de responsáveis políticos a Israel seguem o ritmo habitual. Isto é: as Forças de Defesa de Israel estão há sete meses a massacrar palestinianos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia (onde 481 palestinianos foram mortos desde 7 de Outubro de 2023; 199 foram mortos, em 2023, antes do 7 de Outubro; 154 foram mortos em 2022, de acordo com a ONU – dados que demonstram que a guerra não começou a 7 de Outubro de 2023), mas para além de alguma indignação retórica, o Ocidente continua a apoiar o aliado Israel.

TPI

Estou a meio deste texto quando é conhecido o pedido do Procurador do Tribunal Penal Internacional: mandados de captura para o Primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu e Ministro da Defesa Yoav Gallant, e para Ismail Haniyeh, líder do Hamas, Yahya Sinwar líder do Hamas em Gaza, e Mohamed Deif, das brigadas Al Qassam. Todos suspeitos de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, de que o Procurador considera haver indícios suficientes. O pedido vai agora ser analisado por um painel de Juízes do TPI.

Este pedido do Procurador do TPI abrange líderes israelitas e palestinianos, mas se os palestinianos há muito que se confrontam com as sanções e a classificação de “terroristas” por parte de instituições ocidentais, Israel está perante uma situação inédita. Até agora, para além de críticas quase envergonhadas das instituições, governos e agentes ocidentais, nunca os responsáveis israelitas foram confrontados com algo desta dimensão e este peso. Não havendo ainda mandados de captura, a reacção intempestiva de Benjamin Netanyahu (entre outros) demonstra a preocupação e o receio de que a retórica da constante vitimização, que tudo justificava, parece ter chegado ao fim.

O tempo da impunidade dos decisores israelitas terminou mas o (algum) Ocidente parece que ainda não percebeu algo muito básico: nenhum decisor ou líder político, seja qual for a sua origem ou nacionalidade, pode estar ao abrigo da crítica e da justiça.

Olhar enviesado

Peço emprestada a Ana Sá Lopes uma frase – utilizada noutro contexto (https://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/2024/05/pode-um-deputado-dizer-que-os-judeus.html ) que traduz o que é importante sublinhar: “O coração do Ocidente só tem espaço para uma culpa: o extermínio dos judeus. O extermínio de outros povos, a escravatura, o racismo contra outras etnias que não a judaica, os massacres do colonialismo são “história””. É exactamente assim que o Ocidente se comporta e olha agora para a guerra entre Israelitas e Palestinianos.

Mas este olhar do Ocidente começa a ser difícil de sustentar quando alguns factos são analisados mais de perto. Para além dos actos de guerra propriamente ditos, para além dos mortos e feridos (sem dúvida o mais importante), é indispensável observar o que dizem e como se posicionam os principais protagonistas. Há uma enorme cacofonia em torno da guerra que Israel está a levar a efeito na faixa de Gaza, na qual o Ocidente se deixa envolver, mas não se discute o essencial. Surgem declarações em catadupa, que “abafam” declarações anteriores, e acções de propaganda dirigidas com mestria em relação ao fim a que se destinam.

Façamos perguntas:

Como é possível continuarem os aliados de Israel a dizer que só haverá paz com a chamada “solução dois Estados” enquanto o PM israelita e alguns dos seus principais aliados no Governo dizem que isso nunca irá acontecer? Está muito claro que não haverá Estado da Palestina com o actual Governo de Israel. Qual é a dúvida do Ocidente? Por que é que Benjamin Netanyahu não é confrontado com essa sua recusa?

De que servem os muitos encontros de líderes internacionais com Benjamin Netanyahu que saem dos encontros a dizer que única solução é a de dois Estados, quando logo a seguir o Primeiro-ministro israelita diz precisamente o oposto?

Como podem os aliados ocidentais de Israel continuar a apoiar o que se está a passar sabendo que depois desse apoio a solução não será aquela que pretendem e que está plasmada há muito em resoluções da ONU? Estão a ser cúmplices numa situação para que daqui por algum tempo o Primeiro-ministro israelita venha dizer que estavam avisados e que já sabiam que não haveria qualquer Estado Palestiniano? Netanyahu até poderá perguntar: por que é que nos continuaram a apoiar se já sabiam que não haveria Estado Palestiniano!?

Como é possível continuar a pedir a libertação dos reféns israelitas não impondo a Israel que assine um cessar-fogo sabendo que desde 7 de Outubro a única libertação de reféns aconteceu precisamente quando houve um breve período de cessar-fogo (para além de uma situação em que o Hamas libertou reféns sem que isso estivesse previsto)?

Como é possível ouvir os responsáveis políticos europeus e norte-americanos exigirem a libertação dos reféns israelitas e não dizerem uma palavra sobre os prisioneiros (também eles considerados reféns) palestinianos?

Como é possível a comunidade internacional assistir a sucessivos ataques a comboios de ajuda humanitária com destino à Faixa de Gaza, não responsabilizando o Governo de Israel? Como é possível, haver ataques a comboios de ajuda humanitária num território onde cada centímetro quadrado é escortinado por sistemas de segurança sem a conivência ou cumplicidade das autoridades e forças de defesa e segurança israelitas? Nenhum aliado ocidental confronta Israel com esta situação?

Como é possível Israel ter já desencadeado a grande ofensiva em Rafah – se não é uma grande ofensiva é o quê? – e ninguém admitir isso?

Afinal, o que pretende Israel? Benny Gantz membro do gabinete de guerra israelita ameaça demitir-se se até 8 de Junho se Benjamin Netanyahu não apresentar um plano para o pós-guerra na Faixa de Gaza; o Ministro da Defesa, Yoav Gallant, recusa um pós-guerra em que Israel exerça controlo militar ou civil sobre a Faixa de Gaza e defende uma alternativa de governo palestiniana que não seja o Hamas. A juntar a tudo isto, alguns ministros israelitas mais radicais querem voltar a controlar a Faixa de Gaza.

Gaza, o dia seguinte

Mais uma vez os aliados ocidentais de Israel parecem considerar normal haver uma guerra e um governo envolvido que não tem um plano para o dia seguinte ao calar das armas. São os próprios Estados Unidos que dizem que ainda não viram nenhum plano para o pós-guerra.

Mais extraordinário ainda é que uns (israelitas) e outros (aliados ocidentais) consideram normal falar do futuro do território palestiniano sem ouvir os próprios palestinianos, sendo que a Autoridade Palestiniana, neste momento – sejamos sérios – já não representa a população palestiniana? Quem vai representar os palestinianos? Com que legitimidade? Não ouvir os palestinianos vai dar asneira certa. Há muitos exemplos de situações de conflito em que a resistência, ou os “terroristas”, foram deixados à margem quando foi encontrada uma solução para calar as armas. Parece-me que nunca deu bom resultado porque a velha máxima de fazer a paz com os inimigos continua a ser a única que pode produzir resultados concretos e duráveis.

PS – A fotografia e a legenda foram editadas. Coloquei incialmente a fotografia de Abu Obeida (porta-voz das Brigadas Al Qassam, braço armado do Hamas), quando devia ter colocado a fotografia de Mohammed Deif (comandante das referidasas Brigadas). Está feita a correcção e fica um pedido de desculpa pelo erro.

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