Efeito Netanyahu

Primeira página do Courrier International, 28 de Março de 2024

Li há dias, no 7MARGENS, a denúncia feita por Esther Mucznik sobre uma agressão verbal que sofreu em plena Assembleia de Voto nas recentes eleições legislativas. Um membro da mesa, ao ler o nome de Esther Mucznik no cartão de cidadão, disse: “Não gosto”. Questionado sobre o que não gostava, respondeu: “Não gosto do nome e dos massacres que andam para lá a fazer”. Esther Mucznik contou ao 7MARGENS que o membro da Assembleia de Voto percebeu imediatamente que ela era judia, e relacionou-a com o que se passa em Gaza, e concluiu: “Nós, judeus, somos reféns desta guerra, porque acabam por nos culpar por ela”.

Quem privilegia os Direitos Humanos, a Liberdade e a Democracia, está obviamente solidário com Esther Mucznik e condena o que lhe aconteceu. É inadmissível que alguém possa ser discriminado pela sua origem ou religião, tendo neste caso como agravante que o acto discriminatório tenha tido lugar num momento maior da expressão democrática, e num local que é um “santuário” da liberdade – o local onde cada um de nós, em total liberdade, expressa uma escolha política. Se a discriminação/agressão é sempre inaceitável, ela é ainda mais criminosa quando se faz sentir num momento e num local como é uma Assembleia de Voto.

Sem querer desculpar o autor da agressão, que não sei quem é, digamos que estamos perante o efeito boomerang que atinge quem não tem culpa. Sabemos como se estigmatizam, através de generalizações absurdas, grupos étnicos e religiosos e os judeus não conseguem escapar a essa injustiça. Da mesma forma que os árabes e muçulmanos são vistos como terroristas, ou os ciganos como não gostando e trabalhar, ou os imigrantes quais “ladrões de empregos” nos países onde se refugiam, são agora os judeus a sofrerem esse estigma da responsabilidade pelo crime que está a ser cometido na Faixa de Gaza.

As generalizações são sempre absurdas. Neste caso, há muitos judeus, dentro e fora de Israel, que são contra a guerra, contra a forma como ela está a ser conduzida e são também contra a ocupação dos territórios palestinianos. Mas também é verdade que quem primeiro deve ser responsabilizado é o governo israelita e o conjunto de extremistas que o apoiam. Não é por acaso que Israel está a perder apoio de governos que são habituais (e incondicionais) aliados e a opinião pública internacional apoia cada vez mais a causa palestiniana. Se alguém deve ser responsabilizado é Benjamin Netanyahu porque diz estar a fazer uma guerra em nome do povo judeu. Já sabemos que não é assim, mas é essa a imagem que o governo de Israel faz passar para o exterior. São frequentes as manifestações de judeus contra a guerra onde uma das palavras de ordem é “não em meu nome”:

Outros povos, de diferentes origens e religiões, também sofrem com as generalizações “fáceis”. Os muçulmanos há muito que sentem na pele o estigma do “terrorismo” porque é feita essa generalização fácil que os “transforma”, a todos, em “terroristas”. Acontece na Europa, cada vez mais, depois da vaga de refugiados, na sequência da chamada “Primavera Árabe”, e do efémero califado que a organização Estado Islâmico proclamou no Iraque e na Síria. Juntemos a isto os atentados da Al Qaeda e do ISIS em terras europeias. A pergunta a fazer é: será motivo para que todos os muçulmanos sejam vistos como “terroristas”? Ou para que alguém com um nome muçulmano seja confrontado com essa sua origem e oiça “não gosto!”, numa Assembleia de Voto?

Aliás, aquando de vários atentados reivindicados por grupos islâmicos, foi exigido aos líderes e associações de muçulmanos na Europa, e até em países muçulmanos, que se demarcassem dos actos terroristas, que dissessem que o Islão não representa nem significa colocar bombas ou matar inocentes. Perante o que está a acontecer Gaza (e, já agora, na Cisjordânia), quase 33 000 mortos depois e muitas toneladas de bombas despejadas em zonas densamente habitadas, ninguém exige que líderes ou associações judaicas se demarquem da política seguida pelo governo de Benjamin Netanyahu. A uns exige-se que se demarquem, que expressem moderação e que condenem as más práticas e os crimes; a outros não se exige nada. Alguma demarcação tem existido, é verdade, mas apenas por iniciativa dos próprios e não por exigência ou clamor das sociedades onde estão inseridos.

O Governo de Israel está a destruir grande parte do capital de simpatia e apoio que o Estado de Israel tinha em países que sentia como aliados. Países cujos governos têm fechado os olhos, durante décadas, a todas as violações de Direitos Humanos em Gaza e na Cisjordânia; têm fechado os olhos à expansão dos colonatos e à anexação (embora não oficial) de terras palestinianas; têm fechado os olhos ao não cumprimento das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas; têm fechado os olhos à humilhação infligida aos palestinianos. O Governo de Israel está a deitar borda fora um capital de tolerância que nunca foi dado a nenhum outro Estado. Com a guerra na Faixa de Gaza, o governo de Benjamin Netanyahu está a colocar o povo judeu, e não apenas Israel, em dificuldades. Está a provocar o caos. Não sendo minimamente desculpável o que aconteceu nesta Assembleia de Voto em Portugal, o que Esther Muznick sentiu não foi mais do que o efeito do bater de asas de uma borboleta na Faixa de Gaza. Neste caso, se preferirmos, o efeito Netanyahu.

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