
Como habitualmente, há vagas sucessivas de objectivos e comunicação, que se vão adaptando até atingirem o objectivo final. Esse grande objectivo nunca é declarado desde o início. Vai sendo construído, paulatinamente, com declarações trabalhadas de forma progressiva, e acaba por surgir como algo… inevitável. Israel sempre fez isso ao longo do chamado processo de paz. E é o que está a fazer com Gaza e com os palestinianos de Gaza. O objetivo, agora já assumido de forma aberta por ministros israelitas, é “limpar” Gaza de palestinianos. Quem alertou para isso desde o início da guerra foi trucidado com todo o tipo de acusações. Nações Unidas, Estados Unidos, União Europeia, disseram que não aceitam que os palestinianos de Gaza sejam expulsos do território; a Jordânia e o Egipto (que têm tratados de paz com Israel), países árabes vizinhos, dizem que não aceitam no seu território palestinianos que sejam expulsos de Gaza. Com a intenção de Israel, que já não é disfarçada mas, pelo contrário, é já assumida, veremos o que vão dizer e fazer.
Destino: Congo
O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, ainda não o assumiu assim de forma tão aberta, mas disse numa reunião do Likud que já está a trabalhar para facilitar a migração voluntária dos habitantes de Gaza para outros países: “O nosso problema é encontrar países que estejam dispostos a absorver os habitantes de Gaza e estamos a trabalhar nisso”.
Sem especificar a fonte, o jornal “The Times of Israel” dá conta de que as negociações com o Congo estão a decorrer. Lembremo-nos que um dos mais fiéis aliados das políticas israelitas é o Reino Unido, precisamente o país que quer enviar imigrantes para o Rwanda. A lógica é a mesma, não admira a proximidade.
Em Israel, há ainda ministros a admitirem que a Arábia Saudita poderá ser um bom destino para os palestinianos de Gaza trabalharem na construção civil. É a narrativa a fazer caminho de modo a deixar de ser algo inaceitável para passar a ser algo que pode ser negociado. Aliás, a tentativa de tornar aceitável a expulsão dos palestinianos de Gaza começa logo na expressão utilizada. Chamam-lhe “migração voluntária” e a ministra Gila Gamliel (do Likud, partido do primeiro-ministro) argumentou que “o problema de Gaza não é apenas um problema nosso” (…) “O mundo deveria apoiar a emigração humanitária, porque essa é a única solução que conheço” (…) “no final da guerra, o governo do Hamas entrará em colapso. Não existem autoridades municipais; a população civil ficará inteiramente dependente da ajuda humanitária. Não haverá trabalho e 60% das terras agrícolas de Gaza tornar-se-ão zonas tampão de segurança”. Ora aí está. Ainda com a guerra a ceifar milhares de vidas, a narrativa que serve o objetivo final está a fazer o seu caminho. Expulsar os palestinianos de Gaza está já a ser transformado em algo de “humanitário” que até é benéfico para os próprios palestinianos. É a subversão total do problema através de uma poderosa máquina de criação de factos consumados. E não tardará quem venha apoiar esta solução.
Política oficial
Mesmo quando os próprios Estados Unidos disseram que os governantes israelitas deviam acabar com este tipo de retórica porque é irresponsável e acicata os ânimos, a resposta de um dos ministros mais extremistas (Ben Gvir) foi elucidativa: “ (…) Gosto muito dos Estados Unidos mas não somos mais uma estrela na bandeira americana. Os Estados Unidos são nossos queridos amigos, mas primeiro faremos o que for melhor para o Estado de Israel: emigrar centenas de milhares de (palestinianos de) Gaza permitirá que os residentes dos colonatos (junto à) Faixa de Gaza regressem às suas casas e vivam em segurança e será uma protecção para os militares israelitas”. Traduzindo o recado: enviem-nos as armas e as bombas de que precisamos para atacar Gaza e não se metam na nossa vida. Israel decide, os Estados Unidos obedecem.
É o já referido jornal israelita que escreve: “a deslocação ‘voluntária’ de palestinianos de Gaza está lentamente a tornar-se uma política chave oficial do governo, com um alto funcionário a dizer que Israel manteve conversações com vários países para a sua potencial absorção”.
Temos ouvido o argumento de que a guerra na Faixa de Gaza tem dois objetivos principais: destruir o Hamas e recuperar os reféns. O que já sabemos é que o objetivo final vai muito para além disso e traduz-se na (re)ocupação de um território palestiniano em relação ao qual os israelitas mais radicais nunca aceitaram a retirada dos colonatos levada a cabo por Ariel Sharon em 2005. Agora, querem reocupar esse território e, ainda melhor do que antes de 2005, sem sinal de vida dos palestinianos.
