
Não é uma surpresa ouvir declarações desfasadas da realidade. Em algumas percebe-se a intenção e o interesse. Noutras percebe-se a inépcia. E noutras ainda, talvez – porque devemos dar sempre o benefício da dúvida – alguma ignorância.
Nas últimas semanas temos ouvido várias declarações de dirigentes das instituições da União Europeia sobre o conflito israelo-palestiniano e só com muita cegueira nos podemos rever nelas.
A mais recente dessas declarações foi de Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu, em entrevista à RTP, a 1 de Dezembro. Disse Metsola que a “solução dois Estados” (um Estado de Israel e um Estado da Palestina) ficou mais longe desde 7 de Outubro (dia do ataque do Hamas). Quando Metsola faz esta afirmação no contexto de um conflito que tem décadas e quando essa “solução dois Estados” sempre foi travada pelos sucessivos governos de Israel, significa que não sabe o que está a dizer. Mas é assim que se constrói e prolonga uma narrativa. Assim, subtilmente, declara-se apoio ao governo de Israel e pavimenta-se o caminho para um futuro ainda mais difícil para o povo palestiniano. Israel percebe a carta-branca que tem os selos de Ursula von der Leyen https://meumundominhaaldeia.com/2023/11/28/as-palavras-que-ursula-von-der-leyen-nao-consegue-dizer/ e Roberta Metsola.
A História
Ainda antes da criação do Estado de Israel já Bem Gurion escrevia: “Se não conseguirmos tirar os árabes de onde nós estamos e mandá-los para as áreas árabes (…), então será ainda mais difícil fazê-lo depois da criação do nosso Estado”.
Após a guerra de 1967 (na qual Israel ocupou a Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém oriental), o então presidente francês Charles de Gaulle – que por estes dias dificilmente poderíamos imaginar como um apoiante do Hamas – deu uma conferência de imprensa em que disse o seguinte: “Israel organiza, nos territórios que tomou, a ocupação, que não pode passar sem opressão, repressão, expulsões… e manifesta-se uma resistência que por sua vez (Israel) qualifica de terrorista”. Aliás, lamentou-se depois de que “a parte mais importante” dessa conferência de imprensa não tinha merecido destaque. Foi preciso esperar muito tempo para lhe dar razão.
O antigo primeiro-ministro israelita, Ariel Sharon, considerava os Acordos de Oslo a pior catástrofe que atingiu Israel e dizia aos Estados Unidos, após o 11 de Setembro: “vocês têm Ben Laden, nós temos Yasser Arafat”. Este tipo de retórica repetiu-se agora com Benjamin Netanyahu, actual primeiro-ministro, a dizer que o Hamas é semelhante à organização Estado islâmico.
A guerra não começou a 7 de Outubro
Uma semana depois do ataque do Hamas, ao lado dos presidentes do Conselho Europeu e da Comissão Europeia, Metsola criticou o “whataboutismo” (a prática de responder a uma crítica fazendo uma/outra crítica semelhante) dos que não condenam sem ambiguidade os actos do Hamas. É uma crítica sem substância porque as atrocidades cometidas nesse dia foram condenadas por quase toda a gente, mas pior do que ser Whataboutista – no sentido que Metsola lhe pretende dar – é querer ignorar o historial do conflito e querer passar a ideia de que antes de 7 de Outubro estava tudo bem. Não estava, estava tudo mal. Ou então, se estava tudo bem, esse estado de coisas apenas servia os interesses do governo de Israel. É isto que Metsola transmite, sem dizer.
Vale que neste mesmo dia 1 de Dezembro, a RTP3 convidou o médico Nelson Olim (especialista em medicina humanitária e de emergência), e entre muitas outras coisas disse algo que ajuda a repor algum equilíbrio no enviesamento do olhar sobre a guerra: “As pessoas em Gaza também são uma espécie de reféns que não têm para onde ir”, explicando ainda que quando se diz que os reféns israelitas libertados apresentam perda de peso “a população em Gaza está nas mesmas circunstâncias”. Este médico tem uma vantagem: já trabalhou na Faixa de Gaza. Ninguém esquece o que é viver em Gaza.
Terrorismo…
Quem já tem alguma idade lembra-se de ouvir colar o carimbo de terrorista aos movimentos de libertação nos países então colonizados por Portugal; lembra-se de ouvir o mesmo em relação ao Congresso Nacional Africano (de Nelson Mandela) da África do Sul; lembra-se igualmente do IRA (Exército Republicano Irlandês); lembra-se da Frente de Libertação Nacional da Argélia ser igualmente chamada de terrorista; ou lembra-se ainda – neste caso é preciso ter já uma idade bem avançada – da Haganah e da Irgun, organizações israelitas consideradas terroristas durante o mandato britânico, cujos membros acabaram por integrar as Forças de Defesa de Israel após a criação do Estado hebraico. Todos estes “terroristas” acabaram aceites como parceiros políticos fazendo parte das soluções políticas encontradas para os diferentes conflitos em que estiveram envolvidos. E fizeram-no por vontade própria e por vontade daqueles que se sentiam representados por estas organizações. Devemos ter em conta que o mesmo poderá, eventualmente, acontecer com o Hamas. E vão ser os palestinianos a decidir quem os representa, e não outros por eles.
Ir ao terreno e ver
Não sei se alguma vez, Metsola e Von der Leyen, e muitos outros, alguma vez foram a Gaza ou à Cisjordânia; não sei se alguma vez, presenciaram, leram ou viram imagens de uma incursão do exército israelita nos territórios palestinianos, dos mortos que provocam e do rasto de destruição que deixam; não sei se alguma vez passaram os check-points plantados nesses mesmos territórios, mas se alguma vez o fizerem não vão em colunas de carros blindados com batedores, façam-no como um cidadão palestiniano que apenas quer ir trabalhar ou ver a família; não sei se já viram as crianças palestinianas a serem presas e mortas – aconteceu esta semana, de novo, em Jenin; Não sei se sabem que desde 7 de Outubro o exército israelita e os colonos mataram 241 palestinianos (63 eram crianças) e feriram mais de 3.000; não sei se Metsola e Von der Leyen sabem que desde 7 de Outubro o exército israelita já prendeu mais de dois mil palestinianos, um número muito superior ao que está a ser libertado por troca com os reféns israelitas; não sei se sabem que desde 7 de Outubro, na Cisjordânia já houve cerca de 300 ataques de colonos contra palestinianos; não sei se sabem que antes e depois de 7 de Outubro, os palestinianos continuam a ser desalojados, muitas das suas casas são demolidas e os terrenos confiscados. Não, não devem saber nada disto.
Não sei se Metsola e Von der Leyen sabem que o Hamas ganhou eleições na Palestina e que neste momento tem um enorme apoio da sociedade palestiniana. Não sei se Metsola e Von der Leyen têm noção de que as promessas de mais apoios e mais dinheiro para a Autoridade Palestiniana, não servem de nada neste momento. É frequente ouvir os palestinianos dizerem que não precisam de dinheiro, precisam de dignidade e liberdade. Mas para ouvir isso é preciso lá ir.
Metsola e Von der Leyen, representam instituições da União Europeia, uma organização de grande diversidade, e por representarem sensibilidades e povos com origens e histórias tão diferentes, deveriam ser mais cuidadosas ou, pelo menos, não transmitirem um olhar que revela a incapacidade de perceber que em qualquer guerra as partes envolvidas consideram que têm motivos e legitimidade para pegar em armas.
Se a União Europeia nunca consegue falar a uma só voz quando se trata de política externa, na questão do conflito israelo-palestiniano, não há dúvidas: apoio total a Israel.
É isto a Europa?

Concordo com o argumento geral, mas faço apenas um reparo : o facto de o Hamas ter vencido eleições, mesmo partindo do princípio de que foram limpas, diz pouco para o processo de paz. Netanyahu tb foi eleito pelos israelitas, não uma mas inúmeras vezes, e isso significa pouco para o processo de paz. Na verdade ele, Netanyahu, é, de facto, a antítese da paz. O Hamas tb penso que não quer a paz a menos que Israel desapareça da equação, o que não vai acontecer. Assim sendo, o que resta é o mesmo de sempre: uma equação que provavelmente só se resolve com a proverbial ‘soma zero’, ou seja, não se resolve. Quem dera estar enganado.
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O problema é que o Hamas venceu eleições em 2006, logo a seguir foi boicotado e Gaza esteve cercada desde então. Benjamin Netanyahu sempre fez o que quis e nunca sofreu qualquer boicote, bem pelo contrário. Um das razões para não ter havido eleições desde 2006 foi a de ser impossível realizá-las em Jerusalém oriental devido a obstáculos levantados por Israel.
Quanto ao Hamas e à existência do estado de Israel, desde 2017 que a “Carta” do Hamas aceita as fronteiras anteriores à guerra de 1967, o que significa, na prática, reconhecer Israel. Já agora, Israel alguma vez reconheceu o Hamas como legítimo governante dos palestinianos?
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Tens toda a razão. Eu só quis destacar que a legitimidade eleitoral do Hamas é, para efeitos práticos (entenda-se, para uma via de paz) , tão pouco importante como as vitórias reiteradas de Netanyahu. Uns e outro são fracos baluartes dos respetivos povos pois uns e outro acreditam essencialmente no poder da violência.
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