
O dito e o não dito são igualmente importantes, mas por vezes os silêncios têm maior peso. Não por acaso, qualquer declaração de um líder político, mais ainda quando se trata de política internacional, é escrita com mil cuidados. Cada palavra, cada frase, é pensada e pesada para atingir os objetivos pretendidos. Ninguém imagina que na presidência da Comissão Europeia não exista esse cuidado assente em competentes tecnocratas. Não se vislumbrando incompetência nessa matéria, é impossível, portanto, ler uma declaração de Ursula von der Leyen e imaginar um deslize ou uma gafe. Não, o que está escrito é mesmo o que Ursula von der Leyen quer transmitir. E quanto a isso devemos ficar preocupados.
Podemos concordar com quase tudo o que Ursula von der Leyen escreve na declaração deste 27 de Novembro, após quatro dias consecutivos de trégua na Faixa de Gaza. Há um apelo à libertação de reféns nas mãos do Hamas, satisfação pelo prolongamento da pausa na guerra, comoção pela libertação de reféns nos últimos dias, satisfação pelo aumento da ajuda humanitária a entrar na Faixa de Gaza e agradecimento a mediadores que possibilitaram a trégua. Tudo muito certo, mas falta outro tanto.
Nem uma palavra sobre a ocupação israelita nos territórios palestinianos; nem uma palavra de apelo à libertação de prisioneiros palestinianos; nem uma palavra sobre eventual comoção pela libertação de palestinianos e pela forma como foram recebidos pela população e pelas famílias; nem uma palavra para o facto de Israel ter proibido qualquer manifestação de alegria em Jerusalém oriental aquando da chegada de prisioneiros libertados a esse território palestiniano; nem uma palavra sobre a necessidade de aumentar exponencialmente a ajuda humanitária a Gaza; nem uma palavra sobre as operações diárias (enquanto decorre a trégua em Gaza) do exército israelita nas aldeias e cidades palestinianas, onde diariamente morrem palestinianos; nem uma palavra sobre o facto de Israel, ao mesmo tempo que liberta prisioneiros ao abrigo do acordo de trégua em Gaza, continuar a prender palestinianos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Faltam muitas palavras a Ursula von der Leyen, sinónimo de um olhar enviesado sobre o conflito e de uma consciente deturpação da realidade. É grave, para quem é presidente da Comissão Europeia.
Estas declarações de Ursula von der Leyen acentuam a ausência de uma verdadeira política externa da União Europeia (que na realidade não existe porque cada um dos 27 faz a sua própria diplomacia) e um desastre permanente. Até Tony Blair, que liderou (2007-2015) o chamado Quarteto (ONU, UE, Rússia e Estados Unidos) para o processo de paz no Médio Oriente, tendo sido uma escolha reveladora de grande insensibilidade (esteve ao lado de George W. Bush na invasão do Iraque o que o tornou um inimigo do mundo árabe) conseguiu ter melhor desempenho do que a presidente da Comissão Europeia. Blair, pelo menos, apesar de nada ter feito para acabar com o bloqueio à Faixa de Gaza, acabou a admitir que foi um erro não ter havido diálogo com o Hamas.
Talvez um dia Ursula von der Leyen reconheça que, enquanto presidente da Comissão Europeia, não olhou para o conflito israelo-palestiniano de forma independente e também esqueceu, entre muitas outras coisas, que para além do direito de autodefesa de Israel, esse mesmo direito existe e deve ser reconhecido aos palestinianos.
Mas o que mais choca, neste momento, é que Ursula von der Leyen não tenha aproveitado todos os momentos para apelar a um cessar-fogo, colocando nesse apelo todo o peso dos 27 Estados da União Europeia. Com a tragédia que a Faixa de gaza está a viver, esse apelo é tão só uma questão de Direitos Humanos.
—————————————————————————
Deixo aqui a declaração de Ursula Von Fer Leyen, para que cada um possa tirar as conclusões e, eventualmente, discordar do que escrevi acima.
Congratulo-me com o acordo alcançado sobre a prorrogação de dois dias da pausa nas hostilidades entre Israel e o Hamas. Apelo mais uma vez aos terroristas do Hamas para que libertem todos os reféns feitos durante o horrível ataque de 7 de Outubro.
Nos últimos quatro dias, foi comovente ver a libertação dos primeiros reféns israelitas, juntamente com reféns de outras nacionalidades. Congratulo-me também com o aumento substancial na entrega de ajuda humanitária aos civis palestinianos em Gaza, tornado possível por esta pausa nas hostilidades.
O acordo hoje alcançado amplia esta janela de esperança, permitindo que mais civis em Gaza tenham acesso a ajuda essencial.
Até hoje, a Comissão Europeia organizou uma ponte aérea, através do Egipto, com 20 voos concluídos, transportando quase 900 toneladas de abastecimentos humanitários tão necessários para Gaza. E já estão planejados mais 4 voos para esta semana.
Agradeço a todas as partes envolvidas na garantia deste novo acordo crítico. Em particular, gostaria de agradecer às autoridades do Qatar, do Egipto e dos EUA pelos seus incansáveis esforços diplomáticos para alcançar este acordo. A União Europeia continuará a manter contactos estreitos com todos os parceiros internacionais para trabalhar no sentido de alcançar uma solução política que garanta a coexistência pacífica entre israelitas e palestinianos, baseada na solução de dois Estados.
—————————————————————————
(Versão original, em inglês)
European Commission
Statement Statement by President von der Leyen on the agreement between Israel and Hamas on an extension of the pause in hostilities Brussels, 27 November 2023
I welcome the agreement reached on the extension of 2 days of the pause in hostilities between Israel and Hamas. I once again call on the Hamas terrorists to release all hostages taken during their horrific attack of October 7 th.
In the past four days, it has been heart-warming to see the first Israeli hostages freed, along with hostages of other nationalities. I also welcome the substantial increase in the delivery of humanitarian aid to the Palestinians civilians in Gaza made possible by this pause in the hostilities.
The agreement reached today extends this window of hope, allowing more civilians in Gaza to have access to essential aid.
As of today, the European Commission has organised an air bridge, with 20 flights completed bringing almost 900 tonnes of much needed humanitarian supplies to Gaza via Egypt. And additional 4 flights are already planned for this week.
I thank all parties involved in securing this critical new agreement. In particular, I would like to thank the authorities of Qatar, Egypt and the US for their tireless diplomatic efforts in reaching this deal. The European Union will continue to stay in close contacts with all international partners to work on achieving a political solution that ensures peaceful coexistence between Israelis and Palestinians, based on the two-state solution.
STATEMENT/23/6121

One thought on “As palavras que Ursula von der Leyen não consegue dizer”