Etarras, não! Mas… Franco, qual é o problema?

Seja qual for o Governo que venha a ser formado em Espanha, as recentes eleições tiveram uma virtude maior: o franquismo não existiu e não tem herdeiros. Ou se existiu e deixou herdeiros, são agora uma “rapaziada” reciclada e rendida à democracia. É essa pelo menos a conclusão a que se pode chegar lendo e ouvindo alguns comentadores que quase espumam por não conseguirem aceitar uma das características do sistema (democrático): as eleições legislativas não elegem governos; elegem uma Assembleia que, por sua vez, dá o aval a um governo que lhe é apresentado. Não haverá grandes dúvidas de que a vontade do povo será mesmo respeitada quando a maioria dos eleitos (qualquer que ela seja) aprovar, com votos a favor, um Governo. Podemos não gostar da vontade expressa pelo povo, mas essa é outra história.

“Geringonça” mal digerida

Esta dificuldade de alguns comentadores tem raízes profundas na recente experiência portuguesa habitualmente conhecida por “geringonça”. Salta à vista que não digeriram e nunca vão digerir. É um direito que lhes assiste, mas esquecem-se que foi a democracia a funcionar.

O resultado dessa não-aceitação da “geringonça” é agora transferido para o cenário político em Espanha, quando existe a possibilidade de o PSOE formar (continuar) governo mesmo sem ter sido o partido mais votado. E para contrariar essa possibilidade qual é o argumento preferido dos tais comentadores? Havendo várias forças políticas que podem vir a coligar-se com o PSOE, uma delas é o Euskal Herria Bildu (seis deputados), partido considerado herdeiro da ETA e, por via disso, classificado como “terrorista”, “bando de assassinos” e por aí adiante. Estes comentadores não aceitam que essa página da história de Espanha tenha sido virada e que o EH Bildu aceite, agora, o jogo da democracia parlamentar. São muitos os exemplos de grupos armados que entraram gradualmente na democracia, mas deve ser algo de que alguns comentadores nunca ouviram falar.

Metade da história

A existência do EH Bildu, num contexto com estes resultados eleitorais, chega a parecer, à falta de melhor, um argumento caído do céu. Há mesmo um texto no Público, com chamada de primeira página, onde se chega ao ponto de distorcer a história ou, pelo menos, de a contar pela metade, porque só metade é conveniente. Maria João Marques (MJM), Público, 26 de Julho, página 9, recorda o atentado de 11 de Março de 2004 (concretizado pela Al Qaeda) na estação de Atocha em Madrid. MJM descreve: “a primeira reacção – da população e dos políticos – foi supor tratar-se de um ataque perpetrado pela ETA”; e acrescenta “mas a adesão inicial e imediata à tese do terrorismo etarra na Atocha e as reacções de repulsa da generalidade da sociedade mostram como em Espanha viam a ETA capaz daquele massacre e como odiavam a organização”.

Quase 20 anos depois, esta é a narrativa que serve a MJM para logo a seguir dizer que o EH Bildu é a força política herdeira da ETA. É difícil, num artigo de jornal, contar a História completa dos acontecimentos, mas é pena que MJM não tenha gasto mais uns caracteres para contar a outra metade desta história (atentado em Atocha), na qual, o então Governo do PP foi protagonista: estávamos a três dias de eleições em Espanha e o Presidente do Governo, José Maria Aznar (o mesmo que esteve nos Açores, na Cimeira de Guerra, em 2003, ao lado de Bush, Blair e Barroso) orquestrou uma mentira, pondo a circular que as suspeitas apontavam para a ETA. Logo no dia do atentado, as várias provas recolhidas pelos investigadores já mostravam que nada apontava para a ETA. O Governo do PP sabia, mas, apesar disso, manteve a mentira por mais de 48 horas (até ao limite do possível), inclusivamente com indicações às embaixadas para manterem a narrativa que apontava para a ETA. Também neste caso, como agora, a ETA era o argumento útil. Aznar não teve sorte: a mentira era demasiado evidente e os eleitores castigaram-no.

PP e VOX

O mesmo PP (que mentiu em 2004, tentando tirar dividendos eleitorais e que foi colaborador activo na invasão do Iraque), em Espanha, tem como aliado preferencial e indispensável, o VOX (fundado por dissidentes do PP), para quem o PP era demasiado moderado.

Quase sempre, os mesmos comentadores que criticam a possibilidade do PSOE continuar governo com os tais apoios da “extrema-esquerda” (juntando, por vezes, críticas aos independentistas catalães), são muito suaves com a extrema-direita (VOX), quando não ignoram o assunto de todo, apesar do líder do VOX não se inibir de fazer referências elogiosas ao Franquismo. Nada disso parece incomodar muitos dos comentadores que rasgam as vestes por causa do HB Bildu e da “extrema-esquerda”.

Deixe um comentário