A segunda vaga da Primavera Árabe

Manifestação no Iraque. Créditos: Prensa Latina


Não é difícil imaginar o aborrecimento para quem anunciou a morte da Primavera Árabe. Para uns era apenas gente que anda sempre aos tiros e à pancada e nunca irá entender-se; para outros, era coisa de gente que vive ainda na Idade Média e por isso nada de bom será de esperar…; para outros ainda, tudo não passou de algo orquestrado do exterior e não teve nada de espontâneo. Lamento, mas não é possível concordar com qualquer destas teses simplistas. Seja como for, este é o momento de recorrer à citação do escritor que utilizou o pseudónimo de Mark Twain: a notícia da minha morte (é) foi manifestamente exagerada. Pois foi! A segunda vaga da Primavera Árabe está aí. Tal como a primeira não se sabe no que vai dar, mas está aí.


Desde logo, dizer que é uma segunda vaga, significa que a origem dos protestos e a fórmula encontrada, são as mesmas: ditaduras ou regimes autocráticos, corrupção, necessidade de mudança, social e política, e de liberdade.O que se passa, neste momento, do Sudão ao Líbano, passando pela Argélia e Iraque, deixa poucos argumentos a quem declarou a morte da Primavera Árabe e pensava que estava tudo a regressar à normalidade, entenda-se o regresso, ou manutenção, do poder político, em mãos que deixam o Ocidente tranquilo quanto ao que daí pode contar.Poderia ser assim, mas não é. A “rua árabe” volta a fazer tremer o poder em vários países. Desta vez já não lhe chamam “revolução facebook”. É uma segunda vaga com as características da primeira? Claro que não, nem poderia ser. Tal como a reacção dos poderes instalados não é aquela que foi protagonizada por Moubarak, Kadhafi ou Bashar Al Assad. 
Foquemo-nos em apenas três países, para umas breves notas de contexto.

 Líbano– a 17 de Outubro, o governo anunciou uma taxa sobre as chamadas através da WhatsApp. Foi a gota de água. Há sempre uma “gota de água” que muitas vezes nem sequer é muito importante. Desde esse dia as manifestações não pararam. Manifestantes acusaram a classe política de corrupção generalizada e levaram à demissão do Primeiro-Ministro Saad Hariri. A “rua” exige uma mudança total da classe política que lidera o país desde o fim da guerra civil (1990). Numa primeira fase o Hezbollah esteve solidário com os protestos, mas depois distanciou-se. Barricadas nas ruas, pneus a arder, escolas e bancos encerrados durante muitos dias, economia a afundar-se. Foi indigitado um novo Primeiro-Ministro (Hassan Diab), um sunita – como tem de ser – mas não tem o apoio do bloco sunita e tem o apoio do Hezbollah e do Amal (partidos xiitas), e também do Movimento Patriótico Livre (partido cristão). No Líbano ouviu-se a palavra de ordem que marcou o início da Primavera Árabe em 2011: “O povo quer a queda do regime!”. 
Argélia– já lá vão dez meses de protestos. Em Fevereiro de 2019, a população saiu à rua depois de Abdelaziz Bouteflika manifestar a intenção de se candidatar a um quinto mandato presidencial. Os militares controlam o poder e foram eles que acabaram por resolver a questão exigindo a partida de Bouteflika. Assim foi, mas a “rua” e o Movimento “Hirak” (sem qualquer estrutura dirigente conhecida) exige o desmantelamento do sistema e a criação de instituições de transição que reformem o sistema político. Um tribunal militar condenou várias pessoas por conspiração (entre elas está um irmão de Bouteflika) e outras por corrupção (entre elas dois antigos primeiros-ministros). A exigência da “rua” mantém-se e aumenta a repressão contra os manifestantes. Instituições europeias e Organizações de Direitos Humanos condenam a reacção das autoridades argelinas.As eleições presidenciais de 12 de Dezembro tiveram cinco candidatos, mas o Movimento Hirak acusou os candidatos de serem meros fantoches do poder instalado e apelou à abstenção. Abdelmadjid Tebboune, um antigo Primeiro-Ministro de Bouteflika, venceu com 58% dos votos, mas a abstenção ultrapassou os 60%. Os manifestantes continuam a sair à rua, principalmente à sexta-feira (mais de 40 consecutivas) e querem uma mudança radical do sistema que dirige a Argélia desde a Independência, em 1962. Falta saber como o Exército argelino vai lidar com tudo isto, sendo que é uma instituição com o crédito de ser a herdeira do Exército de Libertação Nacional que travou a guerra da independência (1954-1962) e deu provas recentes de unidade e resistência a movimentos radicais islâmicos. 
Iraque– Como explicar que num país que “nada” em petróleo, a miséria seja a realidade da maioria da população? Desde 1 de Outubro que, com excepção da zona curda, as manifestações têm saído à rua. Exigem a saída dos actuais dirigentes políticos, um poder que acusam de corrupto e incompetente. A repressão tem sido dura: cerca de 500 mortos e vinte mil feridos. Também no Iraque “o povo exige a queda do regime!” e, tal como no Líbano e na Argélia, não há qualquer liderança organizada dos protestos. O poder xiita não está a conseguir lidar com a situação e foi até numa cidade xiita (Nassíria) que a repressão deixou maior marca. O Irão, aliado do actual poder em Bagdad, está também na mira dos manifestantes. O Iraque tem sido um país à deriva desde 2003: desarticulação das instituições do país (exército, polícia, etc..), depois a ascensão da Al Qaeda e, posteriormente, a presença do Estado Islâmico. Entretanto, as grandes petrolíferas instaladas no país utilizam mão de obra estrangeira deixando apenas tarefas menores para os iraquianos. O preço das sucessivas guerras, o desemprego da maioria dos jovens (60% da população tem menos de 25 anos) e a guerra de bastidores entre Estados Unidos e Irão, conduziram o Iraque a uma situação da qual não se sabe como é possível sair. 
Líbano, Argélia e Iraque, são países em que os ventos da Primavera Árabe de 2011 pouco se fizeram sentir mas onde agora o grito de revolta é semelhante. Houve manifestações, é certo, mas algumas promessas e alterações legislativas foram suficientes para acalmar a “rua”. No Iraque, as preocupações eram outras e as prioridades também. Desta vez o poder político está a braços com protestos que não desarmam. Fartas de miséria e habituadas à violência, as pessoas parecem querer dizer que já nada têm a perder.Líbano(1975-1990) e Argélia (1991-2002) são dois países com memória muito recente de guerras civis que custaram muitos milhares de vidas. São muitos anos de violência que levam a população a reflectir antes de qualquer acto que desestabilize estes países. Apesar disso, os protestos estão na rua, a determinação parece ser grande, e não se sabe como tudo isto vai terminar.

Pinhal Novo, 28 de Dezembro de 2019
josé manuel rosendo

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