É urgente que o Jornalismo regresse ao Jornalismo

foto: jmr

Não há muito tempo, o jornal Expresso fez manchete com uma informação que a seguir se provou estar errada; agora, tocou ao jornal Público noticiar a morte de quem, afinal, não morreu. Outros órgãos de informação seguiram a notícia do Público. Se pensarem como eu e sentirem o ofício do mesmo modo, tenho a certeza de que os jornalistas envolvidos têm dificuldade em sair à rua. Para quem tem consciência, e vergonha, assinar um desmentido é tormento suficiente, porque aprendi cedo que o único capital de um jornalista é a sua credibilidade. Sentir essa credibilidade afectada é o pior que nos pode acontecer. Será mais ou menos como o capitalista que vê a quase totalidade das suas acções esfumarem-se num crash bolsista. Mal comparado, mas serve para perceber o prejuízo.
Dito isto, recuso-me a atirar pedras. Nem a primeira, nem a última. Não por atitude corporativista, não porque Jesus Cristo assim ensinou, mas apenas porque entendo que não o devo fazer, principalmente porque sei como funciona uma redacção e sei que amanhã pode bater-me à porta. Ainda assim, não tenhamos ilusões, a cada caso destes é todo o jornalismo que perde.
Os casos referidos, com o impacto que tiveram, são apenas um sinal dos tempos. É bom que se diga que desde sempre houve notícias que obrigaram a desmentidos, mas estes casos podem também ajudar-nos a olhar para dentro e, à falta de melhor argumento, obrigarem-nos a parar para pensar. Os dois casos já foram explicados pelas redacções que deviam essa explicação. Haverá quem aceite as explicações e quem as considere insuficientes, havendo também quem recuse aceitar qualquer explicação. Mas estes dois casos, julgo, levam-nos ao âmago da questão: todos temos de pensar, muito bem, o que andamos de facto a fazer. Que jornalismo andamos a fazer?
Sabemos que as redacções têm cada vez menos jornalistas – ao contrário dos gabinetes de comunicação das diferentes instituições e das assessorias políticas – e que esses pouco jornalistas têm de se desdobrar em milhentas tarefas. Os jornais produzem vídeos, textos para o online e outros para a edição em papel; as rádios produzem vídeos, textos e fotografias para o online; as televisões (as rádios e os jornais) recorrem a imagens e textos publicados nas redes sociais para fazer notícias (sim, eu sei que pode ser uma fonte de informação…), sendo que as televisões ainda produzem os textos e precisam de fotos para o online…  Afinal, andamos a competir com as redes sociais ? Queremos fazer tudo, e tudo ao mesmo tempo? Ou vamos ter a coragem de dizer que o tempo do jornalismo é outro?
É hábito ouvirmos esse argumento vindo da área da justiça: “o tempo da justiça não é o tempo do jornalismo”. E muito bem, não é. E nós não aprendemos que o tempo do jornalismo não é o tempo das redes sociais? E não temos coragem de assumir isso? O tempo do jornalismo – daquele que tem o Código Deontológico como pilar fundamental – não é, não pode ser, o tempo do instantaneísmo, para o qual alertou Paul Virilio (pensador francês recentemente falecido e que cito do jornal Público, edição de 19 de Setembro): “instantaneísmo que destronou o tempo humano e nos tornou dependentes de máquinas e algoritmos”. Temos agora um tempo que “já não tem nada a ver com o tempo da responsabilidade e da razão”. O risco (conclui o artigo que cita Paul Virilio) é o de os meios técnicos permitirem um novo tipo de totalitarismo, “uma opressão sem tirano”.
É nesta teia que o jornalismo está enredado e de onde não encontra forma de sair enquanto não chegar esse momento de dizer não a um conjunto de coisas que, parecendo a solução e o salto em frente, são apenas empurrões que nos fazem cair cada vez mais fundo. Parece que estamos em estado de negação e sabemos bem que isso pode impedir um diagnóstico correcto e uma terapia adequada. Somos poucos a quererem fazer muito.
As novas tecnologias vieram para ficar. Temos de saber tirar partido delas fazendo uma utilização responsável e recusando fazer a figura da criança deslumbrada com o brinquedo novo. E não há nesta reflexão nenhuma atitude de “velho do Restelo”, no sentido do saudosismo em que a referência habitualmente é feita. Até porque, ainda não há muito tempo, um amigo me lembrou que o “velho do Restelo” não era um homem com saudades do passado, era sim um homem preocupado com as consequências de algumas decisões e por isso mesmo preocupado com o futuro.
É a pensar no futuro que o jornalismo tem de regressar a esse tempo que Virilio refere: o da responsabilidade e da razão. São duas características fundamentais para tornar sustentável um ofício indispensável à Liberdade e à nossa sociedade democrática.
Não adianta alguns cantos de sereia que nos acenam com soluções mágicas através do “jornalismo positivo”, do “jornalismo construtivo” ou do “jornalismo empreendedor” … porque nenhuma delas responde a uma simples pergunta: o Jornalismo – aquele Jornalismo normal, sem adjectivo qualificativo associado – não faz já, não pode fazer, o que esses novos “modelos” pretendem que se faça?
Os ritmos de trabalho não podem transformar uma redacção num grupo de pessoas em silêncio, mergulhadas num monitor de computador e com auscultadores nos ouvidos. Assusta-me pensar numa redacção, qual linha de montagem, em que os operários têm o tempo contado para apertar o parafuso e terminada essa tarefa têm outra à espera. Trabalho de autómatos. Uma redacção que não faz uma pausa, uma redacção que não conversa, é uma redacção que não pensa. Jornalismo que não pensa não dá bom resultado. Não pode dar. Não tarda e estamos no ponto em que podemos ser substituídos por robots que “escrevem notícias”. Eles já andam por aí. Preparem-se!
Pinhal Novo, 1 de Outubro de 2018
josé manuel rosendo

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