Temos de falar sobre antissemitismo

O Procurador do TPI, Karim Khan (ao centro na imagem), pediu a emissão de mandados de captura para governantes israelitas e líderes do Hamas. Um pedido que levou Benjamin Netanyahu a dizer que Karim Khan garantiu um lugar entre os grandes antissemitas dos tempos modernos. Foto: TPI

Como diria o grande Mário de Carvalho, “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”. É bom que falemos disso para evitar enviesamentos e aproveitamentos desonestos. E eles têm sido muitos.

Deixando de lado as duas formas (anti-semita e antissemita) e o valor distinto que alguns linguistas lhe atribuem, podemos começar pelo conceito e pelo sentido que lhe é geralmente atribuído. Recuando ao tempo de Noé, entre as várias leituras e interpretações, podemos concluir que os (semitas) hebreus e filisteus têm aí a sua origem. E daí chegamos aos judeus e aos palestinianos. Os judeus não são o único povo semita e assim, em termos estritamente etimológicos, não parece adequado considerar que o antissemitismo seja sinónimo da antiga expressão da Alemanha nazi, a “aversão aos judeus”. Sendo certo que o “antissemitismo” foi cunhado nos tempos mais recentes como sinónimo de um sentimento xenófobo contra os judeus – reconhecido como crime em muitos países – isso também pode levar à construção da ideia, errada, de que os judeus são o único povo semita. No limite, a utilização da expressão poderia ser uma forma de anular/excluir a existência de outros povos semitas.

Mas o que realmente interessa nos tempos que correm é perceber que a banalização da utilização da expressão para acusar quem critica acções do governo de Israel, em particular a guerra que está a varrer a Faixa de Gaza, é algo que não produz os resultados pretendidos e acaba até por prejudicar o próprio povo judeu. Disparar com acusações de antissemitismo por tudo e por nada, apenas prejudica Israel. Se alguém diz que deve haver um cessar-fogo, Israel diz que querem recusar a Israel o direito à autodefesa; se alguém diz que os colonatos na Cisjordânia devem acabar, isso é antissemitismo; se alguém diz que a população de Gaza não deve ser sujeita a uma punição colectiva, isso é antissemitismo… os exemplos podiam continuar. E por fim, quem critica ou é contra o Sionismo, também é antissemita. Sabemos todos que não é assim e é evidente que muitas das acusações de antissemitismo apenas pretendem deslegitimar as críticas e perturbar o debate sobre as questões concretas da guerra, da ocupação dos territórios palestinianos e da solução que é preciso encontrar. Claro que o antissemitismo existe e é condenável, mas para que essa condenação tenha força nos casos concretos em que o antissemitismo se manifesta, não se pode banalizar esse tipo de acusação quando não há razão para isso.

Depois de acusações absurdas à ONU e ao Secretário-geral, a mais recente acusação de antissemitismo foi dirigida ao Procurador do TPI, por este ter pedido mandados de prisão para o Primeiro-ministro e para o Ministro da Defesa de Israel. Benjamin Netanyahu publicou um comunicado em que acusa o Procurador Karim Khan de ter ganho um lugar entre os grandes antissemitas dos tempos modernos e ficar ao lado dos juízes alemães que permitiram aos nazis concretizarem o maior crime da História. Isto é: o governo de Israel e aqueles que o apoiam, aliados externos incluídos, à falta de melhor argumento e no lugar de contrariarem as acusações de que são alvo, esgrimem a acusação de antissemitismo. É uma atitude que traduz uma posição de alguém que se considera inatacável, acima de qualquer suspeita ou acusação. Temos pena, mas isso não existe.

Pacheco Pereira, no jornal Público (18-05-2024) está carregado de razão: “Criticar as violências cruéis de Israel em Gaza não é ser anti-semita”. Podia referir várias passagens do mesmo artigo para desmontar a tese do antissemitismo, mas há uma passagem que é fundamental e que nos leva à essência do conflito: “(…) a herança de ódio nas memórias dos palestinianos, que será o recrutador principal para outros grupos terroristas das crianças que hoje vão sobreviver e que viram o que viram nas andanças da Morte à sua volta”. Pacheco Pereira volta a ter razão, só que, desta vez, chega atrasado. A morte que ronda as crianças palestinianas não é de agora. É certo que nunca a Faixa de Gaza foi tão bombardeada e metralhada e nunca o número de vítimas foi tão elevado mas, morte e humilhação é algo que muitas gerações de palestinianos conhecem muito bem e de há muito tempo. Desde 2008, até setembro de 2023, 6 047 palestinianos foram mortos; no mesmo período morreram 308 israelitas (dados da OCHA/ONU); desde 2007 há um violento cerco à Faixa de Gaza que impede os palestinianos de saírem do território; na Cisjordânia as áreas por onde os palestinianos circulam são cada vez mais estreitas, salpicadas de check-points e sujeitas a incursões militares israelitas quase diárias. As crianças palestinianas de que Pacheco Pereira fala, com razão, não descobriram agora o que é viver sob ocupação nem descobriram agora o que são atentados à dignidade e experiências de humilhação. É por isso que António Guterres tem razão desde que proferiu a frase que enfureceu os dirigentes israelitas: o 7 de Outubro não surgiu do nada.

No que nos toca mais de perto vai ser interessante perceber como se posicionam os países da União Europeia caso o TPI emita os mandados de captura que o Procurador solicitou. Todos os países da União Europeia assinaram e ratificaram o Estatuto de Roma que estabelece o TPI. A escolha não parece fácil: alinham com Israel e com as acusações feitas ao TPI e, em coerência, terão de “rasgar” o Estatuto do TPI; ou aceitam eventuais mandados de captura do TPI (e a aceitação implica a obrigação de deter os visados) e, provavelmente, recebem o carimbo de antissemitas. Alguns já deram sinal, outros ainda não como é o caso de Portugal.

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