
Quem conheceu a Faixa de Gaza antes de 7 de Outubro de 2023, já não tem a mesma Gaza para ver. Desapareceu. Dois terços das habitações destruídas; hospitais, escolas, universidades, mesquitas, abastecimento de água, esgotos, ruas… pouco resta. Bairros antigos, mercados, campos de refugiados, tudo reduzido a escombros. E depois, as almas, mas por aí é mais difícil. Depois de 71 000 mortos e mais de 170 000 feridos, ficaram as marcas de um sofrimento difícil de imaginar. Seria até insultuoso para os palestinianos de Gaza tentar imaginar o que sentem na alma depois da catástrofe que lhes foi imposta. Apenas respeito lhes é devido, muito respeito. Mas a alma de Gaza será difícil de apagar e, a prova disso, chegou ainda há poucos dias quando 168 médicos receberam o diploma de especialização numa cerimónia, não po acaso, frente às ruínas do Hospital Al Shifa. Cerimónia que não esqueceu os médicos vítimas dos bombardeamentos israelitas, havendo cadeiras vazias com as fotografias dos médicos que não sobreviveram.
Memórias

Para quem conheceu Gaza antes de Outubro de 2023, ficam na memória as caminhadas nos campos de refugiados de Jabalyia, com as crianças a gritar “sura, sura” (foto, foto), o campo da praia – Al Shati, caminhadas em Beit Hanoun e Beit Lahia, nas cidades de Gaza e Khan Younes, Zeitoun e Rafah, onde dos túneis que ligavam Gaza ao Egipto saía tudo o que Israel não deixava entrar no território palestiniano. Locais de comércio frenético, crianças por todo o lado, doces e fruta oferecidos ao estrangeiro a cada paragem mais demorada. E chá, claro. Conversas sobre a vida e a liberdade num território cercado por Israel com o aplauso e a cumplicidade da chamada comunidade internacional. Numa dessas incursões conheci o jovem Alan, em lágrimas à minha frente, depois de eu lhe ter dito que era português e jornalista. Eu representava tudo o que Alan queria e não podia ser: livre, para entrar e sair de Gaza; livre para encontrar um emprego e poder… casar. Nada disto o Alan podia fazer.

Em Gaza conheci muitas pessoas, algumas sei que estão vivas, de outras não sei nada. O contacto com as pessoas simples é sempre a parte mais importante do trabalho, assim essas pessoas sintam confiança no interlocutor, e talvez a que melhor nos ajuda a mergulhar numa realidade que não é a nossa. Sabemos que o contacto com os políticos e representantes institucionais é sempre diferente, seja onde for. Gaza não foge à regra.
Estive em Gaza em tempos de “paz”, pós-guerra e quase guerra civil, vi muita destruição, registei a revolta dos palestinianos mas também a vontade de resistir e ficar. Acompanhei campanhas eleitorais e a retirada dos colonatos israelitas em 2005 (por decisão do governo de Ariel Sharon). Lembro-me de entrar em Gaza, através do checkpoint de Erez e ter à minha espera uma flor e até um chupa-chupa. Oferecer doces faz parte da tradição de hospitalidade árabe. Lembro-me de matar a fome com azeitonas, pão e ovos cozidos, oferecidos por palestinianos enquanto esperei, muitas horas, pela autorização israelita para sair de Gaza e reentrar em Israel.

Dos dias passados em Gaza ficam também os poucos momentos de descanso entre a arquitectura árabe (há quem diga que é otomana) do Al Deira Hotel, hoje completamente destruído, e cada fim de tarde na esplanada do Beach Hotel (não consigo perceber se resistiu). São imagens que ficam gravadas, junto à praia onde os palestinianos tomavam banho, comiam as merendas, pescavam e até davam banho aos animais. A cada refeição no Beach Hotel, o empregado pedia desculpa pelo tamanho do peixe, sempre pequeno, porque Israel só autorizava a pesca a pouca distância da margem.

Há um cessar-fogo em vigor desde 10 de Outubro mas os ataques israelitas continuam a matar palestinianos. As condições de vida na Faixa de Gaza são difíceis de imaginar, agravadas com a chegada do Inverno, frio e chuva, que destroem as tendas onde as pessoas se abrigam e inundam os locais onde vivem. É evidente que a ajuda humanitária não está a ser suficiente.
Precisamos de informação de Gaza
Desde Outubro de 2023, a imprensa internacional foi proibida de entrar no território palestiniano e os jornalistas a trabalhar na Faixa de Gaza foram um alvo do exército israelita. No início de Dezembro, os Repórteres sem Fronteiras davam conta que, foram mortos em Gaza quase metade dos 67 jornalistas assassinados em todo o mundo durante 2025. Mais de 200 jornalistas foram assassinados em Gaza desde Outubro de 2023. O Sindicato dos Jornalistas Palestinianos revelou recentemente que desde Outubro de 2023 foram assassinados mais de 700 familiares de jornalistas na Faixa de Gaza. O relatório do Sindicato sublinha que “esta abordagem transforma o jornalismo numa ameaça não apenas para o jornalista, mas também para o seu ambiente social e familiar, corroendo o apoio da comunidade ao trabalho nos media e minando o ambiente de protecção dos jornalistas”.
É indispensável que a imprensa internacional seja autorizada a entrar na Faixa de Gaza. Seria o momento para conferir a realidade sem que essa realidade fosse – como tem sido – escamoteada por Israel, com o argumento de que é construída com base numa narrativa criada pelo Hamas.
O Supremo Tribunal de Israel deu um prazo, até 4 de Janeiro, para que o governo tome uma decisão sobre o acesso da imprensa internacional à Faixa de Gaza. A Associação de Imprensa Estrangeira, que representa centenas de membros de meios de comunicação social internacionais em Israel e nos territórios palestinianos, solicitou aos tribunais israelitas, há mais de um ano, acesso imediato à Faixa Gaza. Até agora o Governo de Netanyahu tem recusado. É pouco provável que altere a decisão.
Não sei se poderei voltar a Gaza, mas gostaria, e por isso expresso esse desejo de uma forma que também significa que as palavras não têm dono e não nos podem ser roubadas: Até para o Ano em Gaza!
Pinhal Novo, 28 de Dezembro de 2025
22h00
jmr
