República de Macron ligada às máquinas

Cartaz em manifestação contra a alteração da idade da reforma em Paris, 6 de Junho de 2023: “não voltes a chamar-me Demcracia, mas sim Macronie”. foto: arquivo jmr

O dia (quinta-feira, 18) foi de greves e manifestações em toda a França. Os sindicatos dizem que um milhão de franceses esteve na rua contra a austeridade, em defesa dos serviços públicos e contra os anunciados cortes orçamentais; a polícia diz que foram mais de 500 mil. A divergência quanto ao número de manifestantes é habitual, mas o sinal de mobilização foi forte e deixa uma certeza: o presidente Emmanuel Macron pode fazer as experiências que quiser, mudando o primeiro-ministro e o governo, mas a rua não muda e Macron terá de contar, e confrontar-se, com ela. Não há como escapar.

Um argumento que muitas vezes ouvi referido durante as manifestações (mais de uma dezena…), algumas muito violentas, contra a alteração da idade da reforma, foi o de que a França precisa de democracia social, querendo isto dizer que os políticos têm de ouvir as pessoas, as organizações da sociedade civil, a rua, deixando de tomar decisões apenas nos círculos políticos formais – legítimos, é certo – que constituem o poder da República. Fazer arranjos de poder, dentro da Assembleia Nacional, cozinhados no Eliseu e em Matignon, sem atender às reivindicações do mundo do trabalho, e tendo em conta o peso eleitoral da esquerda, não devolverá a França à estabilidade política e governativa.

Nem esquerda, nem direita

Convém recuar um pouco para perceber o presente. Emmanuel Macron prometia uma governação “nem à esquerda, nem à direita”. Quando assim é sabemos que é à direita. Macron sempre fez ouvidos moucos à rua, principalmente quando tinha o apoio de uma maioria de deputados na Assembleia Nacional. E fez ouvidos moucos à esquerda, porque tinha esse poder para governar sozinho. O problema foi quando em 2022 o seu campo político perdeu essa maioria absoluta e, depois, obteve um resultado desastroso nas eleições europeias de 2024. Nessas europeias, Macron viu a extrema-direita obter uma estrondosa vitória e perante esses resultados, poucas horas depois do fecho das urnas, o próprio Macron disse que não poderia agir como se nada tivesse acontecido, decidindo dissolver a Assembleia Nacional, convocando eleições legislativas antecipadas em nome de uma “clarificação”. Só Macron poderá dizer o que lhe passou pela cabeça. Eventualmente terá imaginado que os franceses repensariam o voto nas europeias, quiçá assustados com a subida da extrema-direita, mas enganou-se.

Quanto à esquerda, tocou a rebate e formou a Nova Frente Popular, que acabou por ser a mais votada. Perante quase 34% de votos da extrema-direita na primeira volta das legislativas antecipadas, houve um entendimento entre a esquerda e o campo (Ensemble) de Macron na segunda volta (são círculos uninominais), o que permitiu evitar uma vitória do partido de Marine Le Pen e Jordan Bardella, que acabou em terceiro lugar.

As sondagens davam a vitória à extrema-direita e o quartel-general do Rassemblement National, no Pavilhão Chesnaie du Roy, no bosque de Vincennes, engalanou-se, alinhou o champanhe no gelo e as flutes empilhadas em castelo, mas a noite eleitoral quase pareceu um velório. As rolhas saltaram em silêncio, o champanhe não se estragou, mas não houve brindes. Na Praça da República, coração de Paris, a esquerda fazia a festa.

No entanto, se a extrema-direita saiu derrotada, o campo de Macron foi a segunda força política mais votada e também sofreu uma pesada derrota, perdendo 86 deputados. Quem ganhou? A esquerda foi o bloco mais votado.

Rapidamente o então primeiro-ministro Gabriel Attal começou a transformar a derrota em vitória. Disse Attal que tinha alertado para três riscos e que esses três riscos tinham sido afastados: a extrema-direita não obteve uma maioria absoluta, a extrema-esquerda (na versão de Attal) também não, e o bloco de Macron não tinha desaparecido, obtendo até muito mais deputados do que as sondagens lhe atribuíam. Confesso (ninguém é perfeito…) que adoro a semântica e as piruetas (com alguma classe, diga-se…) na política francesa.

A leitura do problema era simples: nenhum dos campos políticos obteve a maioria absoluta. Havia um bloqueio na Assembleia Nacional, como é que a França poderia ser governada?

Governar sem maioria

A França não sabe viver com governos que não sejam da mesma cor política do presidente (aquilo a que os franceses chamam de co-habitação) e a prova disso foi a decisão de Emmanuel Macron face aos resultados eleitorais.

Com o argumento de que um primeiro-ministro de esquerda não teria apoio de uma maioria na Assembleia Nacional, Macron escolheu personalidades da sua área política. Ou seja, mesmo perdendo as eleições, a tal clarificação que Macron pretendia, e houve, não teve eco no Palácio do Eliseu. Macron quis continuar a ter primeiros-ministros da sua inteira confiança política, do seu campo político, esquecendo o resultado da esquerda, esquecendo a frente que tinha feito com a esquerda para enfrentar a principal ameaça (a extrema-direita) e esquecendo até a reeleição de 2022, quando parte dos eleitores de esquerda lhe deram o voto precisamente para evitar uma vitória de Marine Le Pen. Aliás, na noite da reeleição presidencial, foi o próprio Macron a reconhecer que tinha vencido com “votos que não lhe pertenciam” e que sentia essa responsabilidade. Se sentia nunca o demonstrou e após a vitória da Nova Frente Popular, recusou nomear um primeiro-ministro de esquerda mesmo quando os nomes em causa não eram da França Insubmissa, o partido de esquerda que Macron mais detesta.

Muitos franceses olham para Emmanuel Macron como o “Rei-Presidente”. Manifestação em Paris, 19 Janeiro de 2023. Foto: arquivo jmr

Macron até podia ter razão e um primeiro-ministro indicado pela esquerda talvez não conseguisse apoio na Assembleia, mas nem sequer tentou. Se o tivesse feito, teria depois outra legitimidade para tentar uma solução política dentro do seu próprio campo partidário. Assim não tendo sido, desde logo um aspecto ficou muito claro: a esquerda, até vota na direita, se isso travar a extrema-direita; mas a direita jamais votará na esquerda para travar a extrema-direita.

Manter o poder (o primeiro-ministro) sem maioria absoluta na Assembleia já “derreteu” quatro primeiros-ministros e o quinto deve estar quase. Sébastien Lecornu, chamado agora, é um fiel de Macron desde a primeira hora. Desde que Macron é presidente, Lecornu tem estado nos sucessivos governos. Citado pelo jornal OuestFrance, em 2016, disse: “amo a ordem. Para mim, a esquerda significa a desordem!”. Não é preciso dizer mais nada para prevermos o tipo de diálogo que vai manter com os partidos políticos na procura de apoios para fazer passar um Orçamento.

Aliás, é curioso que os governos da era Macron (não esquecer que é um antigo banqueiro) tenham tido sempre muitos milionários. O jornal Le Monde (12 de Junho de 2025) conta que o governo do até agora primeiro-ministro François Bayrou, contava com 22 milionários entre os 36 membros. A média do património era de 2,9 milhões de euros por ministro e o ministro mais rico era o da Indústria e Energia com um património estimado de quase 23 milhões.

Problemas

França é uma economia forte, mas as agências estão a baixar o rating da dívida soberana francesa, a dívida está nos 114% do PIB e é a terceira maior da zona euro, e o défice das contas públicas em 2024 foi de 5,8% do PIB, o maior da zona euro. Macron quer cortar na despesa, mas isso significa cortar nos serviços públicos e nos apoios às famílias. Lecornu tem a missão impossível de tentar chegar a um Orçamento que mereça apoio de uma maioria na Assembleia. Depois dos protestos desta quinta-feira, Lecornu disse que as reivindicações dos manifestantes por mais justiça social e fiscal estão no centro das negociações. Não é a primeira vez que um primeiro-ministro diz isto.

À esquerda e à direita pede-se eleições e até a renúncia de Emmanuel Macron. Há quem peça uma nova República, eventualmente com um sistema não presidencialista. Certo é que a França está politicamente bloqueada e o nó é difícil de desatar. Se Lecornu falhar, o que irá fazer Macron? Uma coisa parece muito clara: se a França chegou aqui, o principal responsável é Emmanuel Macron. O sonho europeu (de Macron) está a desvanecer-se e veremos se consegue concluir o mandato. 2027 ainda está longe.

Pinhal Novo, 19 de Setembro de 2025

03h00

jmr

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