Gaza sem Hamas

No sentido dos ponteiros do relógio: Sheik Ahmed Yassin (assassinado por Israel a 22 de Março 2004), Abdel Aziz ar-Rantisi (17 de Abril 2004), Ismail Haniya (31 de Julho 2024) e Yaya Sinwar (16 de Outubro 2024)

Uma das questões na agenda das negociações que podem conduzir a um cessar-fogo na Faixa de Gaza é o próprio futuro de Gaza e saber quem ficará a governar o território.

O governo de Israel quer destruir o Hamas, militar e politicamente, para evitar que o movimento palestiniano possa voltar a governar o território. Desde logo, há aqui uma perspectiva que não tem em conta a vontade dos palestinianos, como se eles não tivessem direito a escolher quem os governa. Por outro lado, olhar para o futuro de Gaza dissociando-o da Cisjordânia, é fomentar a divisão entre palestinianos e hipotecar ainda mais a chamada “solução dois Estados”. Para Gaza, Israel e os Estados Unidos preconizam, nem mais nem menos, do que uma “mudança de regime”, como já foi feito/tentado noutras geografias e que não deu bom resultado. Esperar que os palestinianos possam aceitar isto, parece pura utopia.

No Afeganistão, em 2001, após o ataque às Torres Gémeas, a resposta/invasão norte-americana afastou os Taliban do poder. O argumento foi a perseguição a Osama Bin Laden e à Al Qaeda. Durante alguns anos, depois dos ataques (1998) às embaixadas dos Estados Unidos no Quénia e na Tanzânia, houve negociações em que os Taliban propunham-se a julgar Bin Laden, ou que ele fosse julgado num país muçulmano. Os Estados Unidos nunca aceitaram, muito menos depois do 11 de Setembro, apesar de ter havido contactos depois dessa data e até poucos antes dos primeiros ataques norte-americanos a Cabul. Os Taliban não entregaram Bin Laden e o preço foi a mudança de regime no Afeganistão, com os Taliban completamente marginalizados. Hamid Kharzai foi apontado para liderar a Autoridade Interina Afegã e, em 2004, foi eleito Presidente da República Islâmica do Afeganistão. Os Taliban ficaram sempre afastados do poder. Durou 20 anos e sabemos como acabou: os Taliban foram recuperando território e em 2021 entraram em Cabul sem qualquer oposição. Os Estados Unidos saíram envergonhados e acusados de traição por parte de alguns países aliados. O Afeganistão perdeu 20 anos, voltou ao ponto de partida e as áreas em que o país até tinha registado alguma evolução, regrediram. Bin Laden só foi assassinado em 2011, no Paquistão. A Al Qaeda ainda existe. Os Taliban voltaram a governar o Afeganistão.

No Iraque, um contexto diferente assistiu a erros semelhantes. O Iraque foi invadido sob o falso pretexto de ter armas de destruição maciça e Saddam Husseín foi afastado do poder. Estados Unidos, apoiados directamente pelo Reino Unido, invadiram o Iraque sem mandato da ONU e destruíram o regime. Forças Armadas, forças de segurança, todas as instituições do regime de Saddam foram desarticuladas e destruídas. Militares e trabalhadores em casa, armas na rua. Os sunitas, minoritários, mas parte importante da população iraquiana, ficaram marginalizados. As organizações Xiitas vencem as sucessivas eleições e o país desliza para a esfera de influência do Irão. O Iraque foi um país sem lei nem ordem durante um largo período e viveu uma terrível guerra civil. Abu Al Zarqawi, que já liderava a organização Al Tawid Wal-Jihad para combater a presença de forças militares ocidentais em países muçulmanos, funda a Al Qaeda no Iraque em 2004, passando a chamar-se Estado Islâmico do Iraque em 2006, e Estado Islâmico do Iraque e Síria a partir de 2013. Muitos dos oficiais do exército de Saddam Husseín juntam-se ao ISIS e acabam a entrar em Mossul onde Abu Bakr al-Baghdad proclamou o Califado (que abrangia parte da Síria). Saddam foi apanhado nove meses depois de os invasores chegarem a Bagdad e acabou enforcado de forma vergonhosa, com as imagens a serem divulgadas e a enfurecerem a população sunita e outros iraquianos que se sentiram feridos na sua dignidade. Ao contrário do que disse George W. Bush por essa altura, a captura de Saddam Husseín não foi “crucial para o crescimento de um Iraque livre”.

Estes dois casos de mudança de regime não devem servir para comparar (porque não é comparável) o Hamas com o ISIS, com o regime Taliban ou com o regime de Saddam Husseín. Servem apenas para dizer que as operações “mudança de regime” e a marginalização de forças importantes, não dão bom resultado.

O que Israel quer fazer em Gaza (se é isso que de facto quer…) é repetir erros semelhantes aos que foram cometidos no Iraque e no Afeganistão. Israel já assassinou quatro líderes do Hamas e outros altos dirigentes do movimento, para além de milhares de combatentes, mas o Hamas não desapareceu. Mesmo que a “mudança de regime” em Gaza possa dar a ilusão de que a curto prazo é uma solução, parece inevitável que mais tarde ou mais cedo a revolta irá surgir com novas roupagens e formas, eventualmente noutros locais.

Há muitos casos de movimentos considerados terroristas que foram chamados à mesa da política e que abandonaram a luta armada. Para isso é preciso negociar, e não impor. Negociar de forma limpa, sem artimanhas, e cumprir a palavra dada e assinada. Enquanto as negociações sobre a “questão palestiniana” forem um simulacro em que há um lado (o palestiniano) em perda constante e outro lado (o israelita) que faz o que quer, independentemente das muitas condenações internacionais e dos apelos para que respeite o Direito Internacional, não será possível que a região viva em paz.

O Hamas já disse, há muito tempo, que não quer governar Gaza, mas quer um governo ao qual possa reconhecer legitimidade e que defenda os direitos dos palestinianos. É isso que está em causa: o direito dos palestinianos a determinarem o seu próprio futuro e a ter o Estado que há muito lhes é prometido. Tudo o que está a ser feito tem como objectivo principal eliminar de vez esses direitos do povo palestiniano.

Pinhal Novo, 11 de Julho de 2025

02h00

jmr

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