Curdistão, o tempo da política?

Manifestante exibe bandeira com a fotografia de Abdullah Öcallan , líder do PKK, em Paris, na sequência do ataque que matou três membros do Centro Cultural Curdona capital francesa. Foto: arquivo/jmr Dezembro 2022

Para travar o entusiasmo provocado pela decisão do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) de se dissolver e entregar as armas, a Agência France Press cita (13 de Maio) uma fonte curda próxima do PKK, no norte do Iraque, que deixa um alerta: “Os combatentes não deixarão as montanhas nem entregarão as armas imediatamente”. Porquê? O PKK espera que as autoridades turcas adoptem medidas concretas, nomeadamente uma amnistia para os combatentes e a libertação dos prisioneiros políticos.

Abdullah Öcallan, líder do PKK, também publicou uma mensagem em que saúda “respeitosamente” a decisão do Congresso, mas não faz qualquer exigência ao governo turco.

O Partido DEM (Partido da Igualdade e Democracia dos Povos) é a grande voz pró-curda no xadrez político da Turquia. É a terceira força política com 56 dos 600 deputados na Grande Assembleia Nacional. É o partido herdeiro de outros partidos pró-curdos sucessivamente ilegalizados pelo governo turco. Tunker Bakirhan, co-líder do DEM, disse (13 de Maio) que o governo turco deve assumir os deveres e responsabilidades que a situação exige, adoptando medidas concretas, que ajudem a estabelecer um clima de confiança, por exemplo, a libertação de prisioneiros políticos doentes e a melhoria das condições de Abdullah Öcallan, preso desde 1999.

Num comunicado emitido logo após a decisão do PKK, o DEM disse que é o momento de (turcos e curdos) viverem juntos como iguais: “De hoje em diante, que se levante a voz da política, não a da negação ou das armas; a voz da reconciliação democrática e social, e não a da raiva; e a voz da coexistência e da igualdade, não a da polarização que emerge deste país”.

Erdogan

O presidente turco saudou a decisão “importante” do PKK porque considera que ela significa paz na Turquia. Recep Tayyip Erdogan disse que está aberto o caminho para uma Turquia “livre de terrorismo”. Mas Erdogan disse mais, segundo a agência Reuters: após uma reunião do governo na noite de segunda-feira, Erdogan afirmou que a decisão de desarmamento (do PKK) também se deveria aplicar às forças curdas sírias, aliadas dos Estados Unidos da América, no nordeste da Síria, forças curdas que Ancara considera parte do PKK. É neste ponto que reside o problema.

O “capital” político dos Curdos

O PKK foi uma força de primeira linha quando a organização Estado Islâmico expandia território e assentou capital em Raqqa, chegando a ameaçar os arredores de Erbil (a capital da Região Autónoma do Curdistão iraquiano). O PKK, as YPG (curdos da Síria) e os Peshmerga curdos iraquianos cerraram fileiras. Tiveram depois o apoio aéreo da Coligação Internacional e também das forças iraquianas e milícias iranianas e pró-iranianas (em especial na batalha de Mossul). Mas, sem os curdos na linha da frente, é difícil saber até onde teria chegado o Estado Islâmico. Aliás, a Turquia chegou a fazer algo inédito que foi autorizar os movimentos de forças curdas em território controlado pela Turquia, não certamente por vontade de Ankara, mas porque a pressão internacional a isso obrigou, uma vez que os curdos eram a única força no terreno que não fugia ao combate com o Estado Islâmico.

Os curdos têm um historial de traições da parte de supostos aliados. Sabem isso melhor do que ninguém e certamente o PKK terá medido as consequências da decisão de desarmamento e dissolução. Aos curdos, nos diferentes países por onde ficaram divididos, cabe a decisão sobre o seu futuro, mas esse futuro, mesmo que a independência e um Estado do Curdistão seja de momento uma não-questão, está interligado.

Para combater o PKK no norte do Iraque, a Turquia instalou dezenas de bases e postos militares em território iraquiano “construindo” uma “zona tampão” ao longo da fronteira onde os guarda-fronteiriços iraquianos são meras testemunhas da vontade turca. Uma recente reportagem da BBC rastreou o território através de imagens de satélite e identificou 136 bases e postos militares turcos e, com raras excepções, essa presença militar turca está quase toda em zonas controladas pelo PDK (Partido Democrático do Curdistão), partido que controla o Governo Regional do Curdistão iraquiano. O partido rival, a União Patriótica do Curdistão, que controla a região de fronteira com o Irão, acusa a Turquia de aproveitar a perseguição ao PKK para interferir no Iraque (cerca de 400 aldeias iraquianas ficaram desertas) e apoiar o PDK: “é uma ocupação em nome da luta contra o PKK”, dizem responsáveis da UPK, que também acusam o PDK de “colaborar com os invasores”.

Um mapa que traduz uma ideia muito próxima da realidade no terreno na fronteira entre a Turquia e o Iraque. os pontos a vermelho são algumas das bases/postos militares turcos em território do Curdistão iraquiano.

Percebe-se facilmente a complexidade da “questão curda”, longe de ser uma causa de abordagem comum a todos os curdos. Os curdos do Iraque são os que até agora conquistaram maior grau de autonomia e autogoverno, mas o Governo Regional do Curdistão iraquiano tem na Turquia o maior parceiro económico, uma situação difícil de gerir perante outras comunidades curdas que são alvos prioritários do governo turco (casos do PKK e das YPG dos curdos da Síria).

Aqui chegados, regressamos às palavras de Erdogan depois da reunião do governo turco na segunda-feira á noite: a decisão de desarmamento (do PKK) também se deveria aplicar às forças curdas, aliadas dos Estados Unidos da América, no nordeste da Síria. O “recado” parece transparente.

Curdos ao longe

Erdogan quer as armas curdas longe da fronteira e as fronteiras não são um limite para a vontade de Erdogan. Seja no Iraque ou na Síria. Uma ideia semelhante à do governo de Israel que quer impor restrições ao posicionamento das forças armadas do Líbano e da Síria junto às fronteiras com Israel.

O Presidente turco durante a Assembleia Geral da ONU, em 24 de Setembro de 2019, mostra o mapa da fronteira entre a Turquia e a Síria, sendo a linha a vermelho o limite da área que a Turquia pretende controlar. Foto: Don Emmert/AFP, publicada em rudaw.net

Erdogan construiu uma zona tampão no Iraque (por causa do PKK), não se sabendo se e quando irá abandonar depois do anunciado desarmamento deste partido curdo e está a construir uma zona tampão semelhante na Síria, por causa das YPG, as unidades curdas que fazem parte, com outras forças árabes, das FDS (Forças Democráticas da Síria, que também combateram a organização Estado Islâmico) e controlam o nordeste da Síria. Erdogan considera que o PKK e as YPG são braços do mesmo corpo e gostaria de ver estas forças curdas da Síria absorvidas pelo novo poder em Damasco. No entanto, apesar da assinatura de um acordo entre Ahmed Al-Sharaa (presidente interino da Síria) e Mazloum Kobani (comandante-chefe das FDS), a 10 de Março de 2025, dificilmente os curdos vão abdicar do comando das suas forças militares e da autonomia que conquistaram no nordeste do país. Uma atitude que contraria os planos de Erdogan.

Actual distribuição de forças na Síria. A castanho claro, no norte, as duas zonas actualmente controladas por forças apoiadas pela Turquia.

Esta situação que dificilmente terá uma solução que agrade a todas as partes tem ainda a influência dos Estados Unidos. O problema de Erdogan, aliado dos Estados Unidos e membro da NATO, é que Washington não considera as YPG como grupo terrorista, ao contrário do PKK, classificado como terrorista por Estados Unidos e União Europeia.

“A bola” está agora claramente do lado da Turquia. Mas da mesma forma que Erdogan chantageou a NATO, exigindo medidas e até a deportação de curdos, para não vetar a entrada de Suécia e Finlândia na NATO, não é de excluir que Erdogan faça depender o processo de normalização com os curdos da Turquia de um outro processo em que as YPG sejam empurradas para uma solução semelhante à do PKK. Por agora algo que parece impossível.

Pinhal Novo, 13 de Maio de 2025

23h30

jmr

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