
Parece haver quem não queira dar descanso à Síria, depois de quase 14 anos de guerra e de um nível de destruição e sofrimento difíceis de imaginar. Em setembro de 2016, escrevi neste mesmo blogue um pequeno texto /deixem-de-brincar-com-a-siria/ . Hoje poderia escrever outro texto exactamente com o mesmo título.
Bashar Al Assad caiu há apenas quatro meses. O velho poder não se esfumou e ainda estrebucha. Há menos de um mês, 13 de Março, o presidente interino, Ahmed Al-Sharaa, assinou a “Declaração Constitucional” (que resultou da “Conferência de Diálogo Nacional”, mesmo com todas as críticas à sua representatividade), que servirá de quadro legal para a fase de transição de poder até à redacção e aprovação de uma Constituição e até que a Síria tenha eleições, provavelmente dentro de 5 anos. É muito tempo? Talvez. Principalmente à luz dos padrões ocidentais e de uma Europa que viveu décadas de paz e conseguiu organizar-se. Não é o caso da Síria.
É preciso conhecer um pouco o mundo árabe e muçulmano, eventualmente ir à Síria, para evitar asneiras como aquelas que exigem de imediato uma democracia ocidental e a realização de eleições. Não é possível.
De forma muito directa: a Síria está devastada. Desde logo a maioria do povo enfrenta uma pobreza extrema porque a economia está destruída, tal como as infraestruturas, incluindo neste caso os sistemas de saúde e educação. O novo poder ainda procura um denominador comum entre os diferentes grupos étnicos e religiosos que possa oferecer algum tempo de estabilidade de modo a conseguir que o país tenha um mínimo de organização. A Síria não tem sequer um aparelho militar que lhe permita defender as suas fonteiras perante as ameaças externas como é o caso da Turquia e de Israel. A sociedade procura refazer-se dos anos de escuridão e sofrimento de uma longa ditadura que vai muito para além dos quase 14 anos de guerra. Há muitos milhares de desaparecidos (morreram na guerra ou nas prisões da família Assad), há milhões de sírios refugiados noutros países e muitos deles, provavelmente, vão querer regressar. Está por fazer um “acerto de contas”, quase inevitável, entre os que foram vítimas do anterior regime e aqueles que o serviram e dele beneficiaram. Escrevi “inevitável” com a noção do que isso significa. Quem pode ignorar o sofrimento de quem perdeu familiares às mãos dos torcionários de Assad? Ou de quem passou anos de sofrimento nas prisões? Não, a vingança, não é caminho, mas é irrealista pensar que “está tudo bem”, porque não está. Se o novo poder conseguir fazer alguma justiça, então poderá ser esse o caminho para que a dor e a raiva dos que sofreram às mãos dos Assad possa ser acalmada e desviada do caminho da vingança.

Mas, para tudo isto, o novo poder precisa de tempo. E precisa também de apoio internacional. Um apoio que pode também tentar introduzir e motivar avanços em matéria de direitos humanos e governança. Nunca perdendo a noção dos valores próprios da região onde a Síria está inserida e da cultura do povo, em que a religião tem um papel de grande importância.
No caso concreto das eleições, que podem ser apenas dentro de cinco anos, é preciso ter em conta que qualquer acto eleitoral realizado neste momento, ou nos próximos meses, seria a porta aberta para um resultado eleitoral ferido de legitimidade porque a Síria não tem condições para realizar eleições devidamente organizadas. Eleições nessas condições conduziriam certamente a um novo conflito que é preciso evitar. Porque não há um aparelho administrativo organizado, não há possibilidade de efectuar um recenseamento minimamente credível que possa ser a base de cadernos eleitorais, tal como não há forças políticas devidamente organizadas que possam concorrer a eleições. A sociedade síria precisa de tempo para aprender a viver neste novo tempo que a queda de Assad proporciona. A própria população, muita dela deslocada internamente e outra ainda no exterior, precisa de tempo para se fixar.
O medo de al-Golani
O presidente interino Ahmed al-Shara, anteriormente conhecido por Abu Mohammad al-Golani, é o homem que parece amedrontar uma parte substancial dos poderes ocidentais. É o líder do Hayat Tahrir Al-Sham (HTS – Organização para a Libertação do Levante), facção maioritária das forças rebeldes que tomaram Damasco a 8 de Dezembro de 2024. De uma forma resumida, al Golani fez parte da organização Estado Islâmico e da Front Al-Nusra (ligada à Al Qaeda), antes de começar a moderar o discurso e a afastar-se do radicalismo das referidas organizações. Começou a concentrar-se na questão síria e desde que o HTS foi formado (janeiro de 2017) combateu o ISIS e a Al Qaeda. Derrotando estes grupos no noroeste da Síria, província de Idlib, foi aqui que al-Golani teve a sua primeira experiência de governação. Há muitas notícias sobre a repressão que as minorias drusas e cristãs sofreram em Ibdlib e essa – o respeito pelas minorias – é a grande dúvida que persiste na nova Síria. Para resolver este problema, que al-Golani quer resolver, nem que seja para obter credibilidade internacional e maior apoio, terá de fortalecer o seu próprio poder dentro da coligação rebelde e impor a sua vontade a outras facções islâmicas mais radicais.

Outro problema que o novo líder sírio terá de resolver é a unificação de todos os grupos armados sob uma mesma liderança. E aqui entra a “questão curda” que entronca directamente na influência turca. Turcos e curdos são forças de sentido oposto e, ao que se sabe, a Turquia é um dos maiores apoios com que al-Golani pode contar. Aliás, há poucos dias, Donald Trump revelou uma conversa que manteve com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan: “Eu disse-lhe (a Erdogan): ‘Parabéns, fez o que ninguém conseguiu fazer em 2 000 anos. Assumiu o controlo da Síria’”. Trump também revelou a resposta de Erdogan: “Não, não, não, não, não, não. Não fui eu”. Seja como for, a Síria é também potencial campo de batalha entre a Turquia e Israel, sendo o próprio primeiro-ministro israelita a admitir que existe um problema ao afirmar que não queria que “a Síria fosse usada por ninguém, incluindo a Turquia, como base para atacar Israel”. Israel aproveitou a queda de Assad para ocupar a zona desmilitarizada dos Montes Golã (território sírio) e tem atacado insistentemente zonas militares sírias. A Turquia não está a gostar e as relações entre a Turquia e Israel deterioram-se gravemente por causa dos ataques israelitas à Faixa de Gaza.
Israel terá motivos para recear a liderança de al-Golani, não por algo que al-Golani tenha feito, mas sim por algo que Israel fez. Um desses motivos é o facto da família de al-Golani ter sido expulsa dos Montes Golã na guerra de 1967, quando Israel ocupou esse território sírio; o outro motivo é o de al-Golani ter admitido que Segunda Intifada Palestiniana, em 2000, quando tinha 17 ou 18 anos, alterou-lhe a forma de olhar o mundo: “Comecei a pensar em como poderia cumprir os meus deveres, defendendo um povo oprimido por ocupantes e invasores”.
Al-Golani terá de saber escolher os amigos. Precisa de ter o maior número de apoios possível e precisa de evitar guerras ou conflitos que atrasem a recuperação da Síria e conduzam a uma perda de popularidade ou até a começar a enfrentar oposição organizada. Se conseguisse um bom entendimento – existe um acordo assinado – com os curdos, seria meio caminho andado, mas para que isso aconteça, al-Golani terá de fazer concessões, porque os curdos muito dificilmente abdicarão da sua própria estrutura militar e administrativa – que lhes custou muito sangue e sacrifícios
Os Estados Unidos chegaram a oferecer 10 milhões de dólares por al-Golani, recompensa retirada após a queda de Assad e a chegada de al-Golani ao poder. Ele prometeu que a Síria seria para todos os sírios, prometeu um Estado de direito e prometeu preservar a paz interna e a integridade territorial da Síria.
Al-Golani não seria o primeiro líder a quem é retirado o “carimbo” de terrorista para passar a ser um respeitado líder nacional. A história está cheia de situações semelhantes e o ocidente deve dar esse benefício da dúvida. Mesmo que com todas as desconfianças em relação a Al-Golani, o povo sírio merece uma oportunidade de tentar viver em paz e com alguma esperança no futuro. Aliás, não faz sentido haver um conjunto de dúvidas e cautelas relativamente ao caminho que a nova liderança síria vai seguir, continuando simultaneamente a considerar-se que uma liderança – a de Benjamin Netanyahu, em Israel – alvo de um mandado de captura do TPI pode continuar o seu caminho. Uma questão de coerência.
*Antigo Acordo Ortográfico
Pinhal Novo, 9 de Abril de 2025
