Israel em roda livre

Destroços de ambulâncias numa zona de oficina após ataques israelitas no campo de refugiados de al-Maghazi, no centro da Faixa de Gaza, a 24 de Março.

As bombas israelitas caem no Líbano, na Síria, e em Gaza. Na Cisjordânia, as tropas israelitas varrem tudo. Tudo o que mexe é visto com potencial “terrorista” e é considerado um “alvo legítimo”. O mundo assiste como se não houvesse nada a fazer. Mas, quem nada fizer, tendo a responsabilidade de actuar perante a enormidade da acção do governo israelita, é tão culpado quanto Benjamin Netanyahu e a trupe que o acompanha. Apesar dos dois acordos de cessar-fogo assinados por Israel, com o Hamas e o Hezbollah, o governo de Netanyahu mata indiscriminadamente e intensifica a agenda radical aproveitando a janela de oportunidade oferecida por Donal Trump.

Faixa de Gaza

É bom que se saiba: Israel rasgou o acordo de cessar-fogo para a Faixa de Gaza. Não foi o Hamas, foi Israel! Desde 18 de Março que os bombardeamentos recomeçaram e as operações militares terrestres foram retomadas.

Se o acordo de cessar-fogo que entrou em vigor a 19 de Janeiro estivesse a ser cumprido, estaríamos quase no final da segunda fase de 42 dias, quase todos os reféns israelitas tinham sido libertados e estaria a começar a fase do início da reconstrução da Faixa de Gaza.

Do que se conhece do acordo, as negociações para definir os termos da segunda fase deviam ter começado sensivelmente a meio da primeira fase de cessar-fogo. Ao que se sabe, ainda houve conversas, mas rapidamente colapsaram porque Israel sentiu que muito do que tinha ficado negociado poderia ser alterado face à proposta de Donald Trump que visa o envio dos palestinianos para países terceiros. Israel acusa agora o Hamas de não aceitar as condições para estender o cessar-fogo, mas o que Israel não diz é que o acordo de cessar-fogo que começou a 19 de Janeiro incluía mais duas fases que deveriam ser negociadas sem a perturbação da limpeza étnica proposta por Donald Trump.

Proposta do Egipto e do Qatar

O Hamas recusou a contraproposta apresentada por Israel (de que não se conhecem os dados) para um novo cessar-fogo na Faixa de Gaza. Responsáveis do Hamas citados pelas agências internacionais de notícias dizem que o Hamas aceitou uma proposta inicial apresentada pelos mediadores do Egipto e do Qatar e que incluía um cessar-fogo de 50 dias durante o qual o Hamas libertaria 5 soldados israelitas, incluindo um com cidadania norte-americana, em troca da libertação de 250 prisioneiros palestinianos incluindo 150 com penas de prisão perpétua. A proposta que o Hamas aceitou previa que Israel libertasse 2 000 palestinianos capturados na Faixa de Gaza desde 7 de Outubro de 2023 e previa também a retirada do exército israelita de muitas áreas de Gaza que reocupou desde 18 de Março e o envio de ajuda humanitária. O Hamas aceitou mas o primeiro-ministro israelita anunciou que apresentou uma contraproposta. O Hamas não aceita a contraproposta israelita.

Balanço dramático

Dez dias após os ataques terem sido retomados na Faixa de Gaza, a UNICEF referia que Israel matara 322 crianças e 609 foram feridas. “Mais de uma centena de crianças mortas ou mutiladas diariamente” neste mesmo período, escreve a UNICEF em comunicado. A maior parte destas crianças eram deslocadas, viviam em tendas ou em casas danificadas, e uma parte delas estavam no Hospital Nasser, atacado por Israel a 23 de Março.

No balanço geral (a 2 de Abril) desde 7 de Outubro de 2023, a UNICEF refere que as forças militares israelitas mataram mais de 15 000 crianças e feriram mais de 34 000, sendo que cerca de um milhão de crianças perderam a casa onde viviam e o direito a serviços básicos. O Ministério da Saúde de Gaza dá conta de 50 399 mortos desde o início da guerra, incluindo 1 042 desde 18 de Março.

Esta quarta-feira, 2 de Abril, uma clínica/abrigo da UNRWA no campo de refugiados de Jabalia foi atacada: pelo menos 19 mortos, metade eram crianças. À hora em que este texto é escrito, o número de mortos desta quarta-feira ascende a 70.

A lista de atrocidades é longa e é impossível reproduzi-la na íntegra, mas nos últimos dias o ataque aos paramédicos do Crescente Vermelho foi noticiado em larga escala, embora tenha ficado a ideia de que não incomodou governos e instituições europeias. Oito paramédicos, seis membros da defesa civil e um trabalhador da ONU, foram assassinados. Durante cerca de dez dias, o Crescente Vermelho esteve impossibilitado de aceder à zona onde ocorreu o ataque. Em desculpas mal-amanhadas Israel veio reconhecer que tinha atacado as ambulâncias na zona de Rafah por terem sido consideradas “suspeitas”.

Corpos de paramédicos do Crescente Vermelho assassinados na Faixa de Gaza. Foto: Facebook do Red Crescent em Gaza

De acordo com o Middle East Eyes, desde 7 de Outubro de 2023, Israel matou 105 membros da defesa civil de Gaza, 27 paramédicos do Crescente Vermelho, 284 trabalhadores da ONU e cerca de 1 400 trabalhadores do sector da saúde.

Gaza está de novo completamente cercada. O Programa Alimentar Mundial diz que as reservas alimentares estão a terminar. As 25 padarias apoiadas por este Programa já fecharam por falta de combustível. Nas últimas horas, Israel anunciou que vai aumentar a pressão e os ataques a Gaza, e pretende dividir Gaza em parcelas sendo que uma delas passa por isolar Rafah criando um segundo corredor de Filadélfia a pouca distância do original, o que está na fronteira entre Gaza e o Egipto.

O traço azul é onde Israel pretende estabelecer um segundo “corredor Filadélfia para isolar Rafah do resto da Faixa de Gaza.

Jornalistas

Percebeu-se há muito que basta Israel considerar alguém “suspeito” para que o gatilho tenha luz-verde. É o caso dos jornalistas e de outros trabalhadores dos media. Nos últimos dias de Março, Mohammad Mansour (Palestine Today) e Hossam Shabat (Al Jazeera) foram assassinados. Israel admitiu ter matado Hossam Shabat acusando-o de ser um “terrorista”. O Comité para a Protecção dos Jornalistas considera que desde 7 de Outubro de 2023, este é o “período mais mortífero para os jornalistas desde que o CPJ começou a recolher dados em 1992”. A mesma instituição dá conta de 165 jornalistas palestinianos mortos nas várias zonas de combate (Gaza, Cisjordânia, Israel e Líbano) sendo que a esmagadora maioria são palestinianos (165) e morreram em Gaza. Os Repórteres sem Fronteiras refere mais de 200 jornalistas mortos desde 2023, incluindo 42 que foram assassinados enquanto estavam a trabalhar.

Mohammad Mansour, jornalista da Palestine Today e Hossam Shabat, jornalista da Al Jazeera Mubasher. Fotos publicadas pelo Sindicato dos Jornalistas Palestinianos

Cisjordânia

O ministro das finanças israelita, Bezalel Smotrich, diz que Israel está na Cisjordânia “para ficar”: “Judeia e Samaria, berço da nossa pátria, a terra da Bíblia. Estamos para ficar”. Smotrich defende abertamente a anexação da Cisjordânia, tal como aconteceu a Jerusalém Oriental. Smotrich e Israel Katz (ministro da defesa) disseram que recusam a ideia de ver a Autoridade Palestiniana a controlar a Cisjordânia. De nada serve o que foi determinado pelo Tribunal de Justiça Internacional (órgão jurisdicional da ONU): Israel tem “a obrigação de terminar imediatamente qualquer nova actividade de colonização” e de “evacuar todos os colonos”. No final de 2024, a ONG israelita “Paz Agora” denunciava nos territórios palestinianos a existência de 147 colonatos israelitas reconhecidos pelo governo de Israel e 224 considerados “selvagens”.

Por toda a Cisjordânia multiplicaram-se as operações/ataques militares israelitas, deixando um rasto de campos de refugiados esventrados e dezenas de milhar de palestinianos que foram obrigados a deixar as casas onde viviam.

Em Jerusalém Oriental, Ben Gvir esteve esta quarta-feira, 2 de Abril, na Esplanada das Mesquitas. Com protecção policial, o ministro de extrema-direita protagonizou o que sabe ser uma provocação para a população muçulmana. O Egipto condenou a acção de Ben Gvir, a Arábia Saudita condenou a “agressão” israelita ao terceiro lugar sagrado do Islão, o ministro dos negócios estrangeiros da Jordânia considerou que “a tomada de assalto da Mesquita Al Aqsa” foi “uma provocação inaceitável” e uma “violação do carácter sagrado da Mesquita de Al Aqsa e do estatuto histórico”. A intenção de Ben Gvir é óbvia, por ser uma prática repetida: provocar uma reacção dos palestinianos para ter uma justificação para acções violentas e repressivas.

Líbano e Síria

Desde que há mais de quatro meses entrou em vigor o cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah, 127 libaneses morreram vítimas de 47 ataques israelitas. Os dados foram recolhidos pelo jornal “L’Orient-Le Jour” que acusa Israel de ter cometido mais de 1 500 violações do acordo de cessar-fogo.

Israel continua a fazer uma interpretação muito sui generis e muito larga do conceito de legítima defesa e também do que ficou estabelecido no acordo de cessar-fogo. Quase desde o primeiro dia de cessar-fogo Israel continuou a atacar o sul do Líbano e agora os ataques já chegaram à região sul de Beirute. Justificação: Hassan Bdair, a quem Israel acusa de ser o homem do Hezbollah encarregado da ligação com o Hamas.

A 22 e 28 de Março foram disparados rockets a partir do Líbano contra território israelita, os primeiros desde o início do cessar-fogo, depois de muitas violações israelitas. O Hezbollah recusou responsabilidade e as autoridades libanesas prenderam “suspeitos” sem mais nada se saber sobre o caso. O ministro da defesa israelita avisou que o sul de Beirute será atacado sempre que Forem lançados rockets contra Israel.

Para continuar a atacar o sul do Líbano Israel argumenta que não pode permitir a presença do Hezbollah a sul do Rio Litani (a 30km da fronteira com Israel), porque isso coloca em causa a segurança de Israel.

Israel usa o mesmo argumento para ocupar agora a zona tampão desmilitarizada dos Montes Golã, território sírio. Desde 8 de Dezembro de 2024, quando a coligação rebelde tomou o poder em Damasco, Israel atacou centenas de alvos militares sírios dizendo querer evitar que as armas caíssem nas mãos das novas autoridades consideradas jihadistas. Esta quarta-feira, 2 de Abril, Israel atacou um centro de investigação militar em Damasco, o aeroporto militar de Hama e o aeroporto militar T4, na província de Homs. A agência de notícias síria, Sanaa, dá conta de quatro mortos em Hama.

Situação nos Montes Golã a 10 de Dezembro de 2024. Grafismo: Middle East Eye.

A 23 de Fevereiro, Benjamin Netanyahu exigiu, numa clara interferência na soberania síria, a “desmilitarização total do sul da Síria” acrescentando que Israel não irá tolerar que as forças do novo poder sírio ocupem posições a sul de Damasco. Israel também já disse que está na zona tampão dos Montes Golã para ficar.

Egipto

O “desconforto” israelita em relação aos países vizinhos já chega ao Egipto, primeiro país árabe que assinou um Tratado de Paz com Israel. O jornal Jerusalem Post (JP) cita uma “fonte da segurança israelita”, que não identifica, para dar nota de que o Egipto mobilizou forças militares na Península do Sinai, expandiu instalações portuárias e aumentou pistas de aeroportos, para além do que está estabelecido no Tratado de Paz. A mesma fonte disse ao JP que Israel não aceitará esta situação e não vai tolerar violações ao Tratado, acrescentando que o assunto está a ser discutido com o Egipto e com os Estados Unidos. O assunto ainda não chegou ao topo das notícias mas o embaixador de Israel nos Estados Unidos disse recentemente que a situação é intolerável e que será um tópico que Israel vai colocar em breve em cima da mesa, e com muita firmeza.

PS – os números referidos neste texto estão em permanente actualização e podem já não corresponder à realidade no momento da leitura.

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