A Síria pode resvalar

No Souk Al-Hamidiyeh, cinco dias após a fuga de Bashar Al Assad, apagavam-se as marcas do antigo regime e mudavam-se as cores da bandeira síria. Foto: jmr/arquivo, Damasco 13 de Dezembro de 2024.

Três meses depois da queda de Bashar Al Assad, e de alguma acalmia, a Síria regressou aos dias de violência. À hora a que escrevo, a agência Reuters cita o Observatório Sírio dos Direitos Humanos para dar conta de mais de um milhar de mortos, em cerca de 48 horas, nas províncias de Tartous e Latakia, região noroeste da Síria onde os Alauitas são maioritários.

Confusão

Consoante as fontes, assim a leitura dos acontecimentos. O Ministério da Defesa da Síria admite a morte de dezenas de elementos das forças de segurança e refere que a onda de violência começou quando elementos do antigo regime atacaram as forças das novas autoridades, nomeadamente comboios militares e postos de controlo; há referências a execuções sumárias; há acusações de que civis alauitas foram executados por forças do actual regime; há informação de que algumas forças envolvidas nos combates contra os alauitas não estão sob o comando das novas autoridades de Damasco. Muitas famílias alauitas refugiaram-se na base russa de Khmeimim, em Latakia e várias zonas estão sujeitas a recolher obrigatório. Há um conjunto de informação que é impossível verificar, mas é inegável que a violência está a varrer a região noroeste da Síria.

Momento perigoso

O presidente, Ahmad al-Charah, deixou claro que vai continuar a perseguir os elementos que restam do antigo regime, pediu para que os civis e os prisioneiros sejam tratados sem violência e disse que quem o não fizer será levado a tribunal.

Este é um momento perigoso para a Síria. O actual regime procura consolidar o poder, é evidente que não tem forças militares suficientes para controlar a totalidade do país e o eclodir de um conflito, neste momento, será um tremendo rombo na necessária reconciliação nacional. Há ainda elementos do antigo regime que continuam armados – desconhece-se a sua real força – há os curdos que recusam a integração no exército sírio da maneira que o poder central pretende, há grupos anti-Assad no sul do país que também recusam essa integração e há bolsas da organização Estado Islâmico que continuam no país.

Outras frentes para as novas autoridades sírias são a ocupação israelita na zona dos Montes Golã e os ataques israelitas a locais onde, alegadamente, existem armas e munições que pertenciam ao antigo regime sírio; e há também a presença e os ataques da Turquia na fronteira norte. Tudo isto em paralelo com uma economia destruída e um país a precisar de quase tudo. É bom que nos recordemos que a Síria está a viver um novo tempo há apenas três meses.

Assad caiu há apenas três meses

A Síria é um tabuleiro étnico e religioso complicado. É uma verdade de La Palisse que se aplica a quase todos os países do Médio Oriente mas é também a génese da dificuldade em encontrar soluções e compromissos que permitam a paz e a estabilidade. E depois há as influências externas. Há sempre alguém pronto a tirar partido e a querer condicionar a política interna dos países nesta zona do mundo.

A edição especial do Le Monde sobre o fim do regime da família Assad.

O ex-presidente Bashar Al Assad fugiu de Damasco há precisamente três meses. O regime caiu mas, obviamente, não se esfumou. Muitos fugiram, mas outros continuam na Sìria e há contas por acertar. Não é forma de resolver o passado, mas é quase inevitável que isso aconteça tal a dimensão da tragédia com que os sírios foram confrontados durante mais de uma década. Há muitas contas por acertar, se atendermos aos quase 14 anos de guerra em que a oposição foi massacrada e a população, estivesse ou não envolvida no combate a Bashar Al Assad, foi vítima da violência criminosa do antigo regime, sofreu dezenas de milhar de mortos e desaparecidos, tortura e fome.

Em Janeiro de 2025 as novas autoridades anunciaram a dissolução do HTS (Hayat Tahrir Al Sham – Organização para a Libertação do Levante) e teve início um processo (individual) de admissão de antigos militares sírios nas novas Forças Armadas Sírias. O processo será inevitavelmente lento e nem todos os rebeldes que tomaram o poder em Damasco concordam com a dissolução e integração dos respectivos grupos armados, o que significa sujeitarem-se a um novo comando.

Por outro lado, as figuras de algum destaque que continuam no país, sabem que não vão escapar – é uma questão de tempo – e estão na disposição de resistir. A alternativa é o julgamento e a mais que provável condenação.

O mais procurado

Um desses casos é um dos mais destacados militares do antigo regime, o Brigadeiro-General Ghiath Suleiman Dalla (na fot acima) que era o comandante da 42ª Brigada do regime sírio, liderada por Maher al-Assad, irmão de Bashar al-Assad. Dalla nasceu (em Jablé) precisamente na zona onde se verificam os combates e desde o início da revolta síria, em 2011, foi uma figura-chave nas ofensivas contra os revoltosos, acusado de muitos crimes e de violações dos direitos humanos.

Ghiath Suleiman Dalla, oriundo de uma família absolutamente leal a Assad, é o fundador do Conselho Militar para a Libertação da Síria, uma aliança de antigos líderes militares do regime de Assad anunciada no dia 6 de Março. Na declaração deste “Conselho Militar” é exigida a libertação da Síria de todas as forças ocupantes e terroristas. Dalla é visto pelas novas autoridades sírias como o cérebro por detrás dos combates que começaram na última quinta-feira.

No dia seguinte ao início dos combates, Ahmad al-Charah, apelou aos “insurgentes alauitas para deporem as armas antes que seja demasiado tarde”.

O novo regime dá todos os sinais de que vai ser impiedoso com quem não aceitar a nova ordem síria. O país está num momento de encruzilhada e depois de uma longa guerra que afastou Bashar Al Assad não vai querer perder o controlo apenas porque existem umas bolsas de resistência. Pode não ser bonito de ver, mas Ahmad Al Charah vai ter mão de ferro porque sabe que antes de se poder dedicar a outras tarefas terá de eliminar todos os focos de resistência associados ao antigo regime. Matar o sonho de um eventual regresso de Assad é a prioridade do novo poder sírio e não é difícil acreditar que terá o apoio da maioria dos sírios.

Deixe um comentário