
O momento é histórico: Abdullah Öcalan, fundador e líder do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) apelou aos combatentes do partido para deporem as armas. Numa declaração lida em Istambul por uma delegação que o visitou na prisão, Öcalan aponta para uma solução democrática que conduza à paz. Sustenta esta decisão na alteração do contexto em que a luta do PKK foi desencadeada, diz que o presidente turco, Erdogan, manifesta uma vontade que cria um ambiente que permite a deposição das armas e assume “a responsabilidade histórica” deste apelo: “todos os grupos devem depor as armas e o PKK deve autodissolver-se”.
Convém dizer que Öcalan, 75 anos, está a cumprir pena perpétua numa prisão turca desde 1999 e foi aí que recebeu a delegação curda que depois transmitiu o apelo à deposição das armas. Nunca é totalmente seguro aceitar uma declaração com este peso da parte de alguém que está privado da liberdade há 26 anos (preso a 15 de Fevereiro de 1999), mas também não há sinal – nem do PKK – de que devemos desconfiar do apelo de Apo (Tio, em curdo, assim é conhecido Öcalan).
Sim, mas…
Dois dias depois do apelo de Öcalan, o comité executivo do PKK declarou o cessar-fogo, reservando-se o direito de responder a qualquer ataque. Numa mensagem transmitida através de canais próximos do PKK, a direcção do partido declara estar de acordo com o líder, diz que vai respeitar a decisão, mas faz uma exigência: “Só a liderança efectiva do líder Apo pode permitir a concretização de questões como a deposição das armas. Para o sucesso do Congresso, o líder Apo deve dirigi-lo pessoalmente”. É assim que o PKK exige a libertação de Abdullah Öcalan.
Aliás, desta decisão histórica do líder do PKK apenas se conhece a própria decisão, faltando saber o que terá sido negociado e o que terá sido prometido a Öcalan (e ao PKK) por troca com o cessar-fogo. O Ministro da Justiça da Turquia disse que não houve nem há qualquer negociação sobre a libertação de Öcalan. Será difícil acreditar que após quatro décadas de luta e 26 anos de prisão, Öcalan tenha decidido alterar o rumo de forma radical sem nada obter em troca, para o PKK e para os Curdos. A libertação será, sem dúvida, um passo indispensável para que o cessar-fogo seja apenas um primeiro momento do caminho, difícil e demorado, até à paz.
Para já, o vice-presidente turco, Cevdet Yilmaz, disse que dissolução do PKK foi decidida “sem negociação” e o presidente Erdogan referiu-se à destruição do “muro do terror”, prometendo aos familiares das vítimas da guerra com o PKK não desrespeitar o “espírito sagrado dos mártires” e avisando: “O nosso punho estará sempre pronto se a mão que estendemos não for agarrada ou se for mordida”. Palavras que podem ser lidas como uma recusa a abrir a porta da prisão a Öcalan.
Além fronteiras
O momento é histórico e não apenas para o PKK. A decisão de Öcalan ecoa em todo o mundo Curdo e em todo o Médio Oriente.
Na Síria, onde os Curdos construíram uma administração semiautónoma, o apelo de Abdullah Öcalan foi saudado mas com a ressalva de que os Curdos da Síria vivem um contexto de guerra e não podem depor as armas. As forças dos Curdos da Síria (YPG – Unidades de Protecção do Povo) têm sido acusadas por Erdogan de serem um ramo do PKK, mas sempre negaram essa ligação embora não neguem a inspiração política no líder do PKK.

Mazlum Kobani, comandante das FDS, fez amizade com Öcalan quando o líder histórico viveu na Síria. Olha para o apelo de Öcalan como algo que não diz respeito aos curdos da Síria mas apenas ao PKK. Também a líder das YPJ (brigadas femininas), Nasrîn Abdullah, reconhece que Öcalan faz um apelo histórico para todo o Médio Oriente, em nome da democracia e da paz, mas lembra que o apelo é feito ao PKK e não aos Curdos da Síria. Nasrîn Abdullah diz que as armas e a guerra são o último recurso quando não há democracia e que esse é o caso do nordeste da Síria onde os Curdos enfrentam ataques quase diários da Turquia e estão perante um novo governo sírio que recusa qualquer tipo de federalismo e quer integrar as forças curdas no novo exército sírio.
Nas montanhas de Qandil, do norte do Iraque, onde estão as maiores bases do PKK, respeita-se o apelo de Abdullah Öcalan mas olha-se com muita desconfiança para as intenções da Turquia. Principalmente os líderes mais antigos que passaram a vida a lutar pelo que consideram ser os interesses do povo Curdo, não querem uma situação em que abandonam a luta sem nada terem conseguido. Quando as duas anteriores tentativas de acordo entre a Turquia e o PKK (2009-2011 e 2013-2015) ruíram, seguiram-se vagas de repressão. Nada garante que desta vez seja diferente. Quem tem 40 anos de guerra, prefere ter certezas.
Em Bagdad, o governo considera que o apelo de Öcalan e a deposição das armas do PKK pode trazer mais segurança ao Iraque e à região. Bagdad e Ankara têm tido uma relação conflituosa devido aos ataques turcos às bases do PKK no norte do Iraque onde a Turquia mantém bases militares (40, de acordo com fontes iraquianas) com o consentimento do Governo Regional do Curdistão mas com o governo central a denunciar o desrespeito pelo Direito Internacional. O Iraque considerou recentemente o PKK como uma “organização interdita” mas a Turquia pretendia que fosse designado por “organização terrorista”.
No Curdistão iraquiano, Nechirvan Barzani, do Partido Democrático do Curdistão e presidente do Governo Regional, que mantém uma boa relação com a Turquia, gostou da mensagem de Öcalan e diz estar pronto a facilitar e a ajudar no processo de paz.
A outra histórica força política no Curdistão iraquiano, a União Patriótica do Curdistão, também recebeu o apelo de Öcalan como “responsável e necessário” de modo a unir os Curdos e resolver os problemas através do diálogo.
O Irão, tal como a Turquia, considera o PKK um grupo terrorista e saúda a decisão que “renuncia à violência” dizendo esperar que o aumento de segurança na Turquia tenha reflexos em toda a região.
A alteração da relação de forças no Médio Oriente, devido às guerras com Israel, obriga a rever estratégias e os Curdos, nos diferentes países em que vivem, não poderão alhear-se da nova realidade. O Iraque é o país onde a situação dos Curdos tem alguma estabilidade, mas na Turquia e na Síria, onde a luta do PKK se tem feito sentir, a situação é bem diferente. Na Turquia, a repressão do governo turco em relação a representantes políticos, eleitos e jornalistas, não abrandou, tendo havido recentemente largas dezenas detenções; na Síria, o novo governo não admite uma solução federal (como existe no Iraque) para acomodar a região que vive com uma administração semiautónoma desde 2013 e onde as milícias curdas tiveram papel fundamental na derrota da organização Estado Islâmico. São precisamente estes curdos da Síria que ainda contam com o apoio dos Estados Unidos mas que Donald Trump já ameaçou que vai terminar.
Falta saber o que vai, de facto, decidir a nova administração norte-americana, mas com uma situação demasiado incerta e volátil em toda a região será avisado não querer desenhar desde já um futuro para os Curdos e para o PKK.
