Faixa de Gaza retrocedeu 69 anos

Cidade de Rafah, Faixa de Gaza junto à fronteira com o Egipto. Foto UNRWA/Ashraf Amra

“O período de morte terminou, começa o da não-vida”, é o título de uma crónica recente de Rami Abou Jamous, palestiniano da Faixa de Gaza e fundador da GazaPress, que tem mantido um diário, desde Fevereiro de 2024, no Oriente XXI, jornal online dedicado ao mundo árabe. Rami é um dos cerca de dois milhões de palestinianos que foram obrigados a deixar os locais onde viviam e a procurar refúgio. Fugiu da cidade de Gaza, levando a mulher e os filhos e tem descrito ao longo destes meses todo o sofrimento a que os palestinianos têm sido sujeitos.

O título desta crónica de Rami ilustra bem o que podem ser os próximos tempos no enclave palestiniano junto ao Mediterrâneo: a “não-vida” é a expressão que ele encontrou para definir os palestinianos que sobreviveram: andam, comem quando há, dormem, respiram e… a pouco mais podem aspirar. Afinal, qual vai ser o futuro imediato de Gaza? Quando é que as pessoas voltam a ter uma casa, uma escola, um emprego, hospitais, água potável, electricidade… quando?

A dimensão da catástrofe

Desde logo, falta conhecer a dimensão do desastre em termos de vítimas mortais. Há mais de 47 000 mortos, mas desde que o cessar-fogo começou, várias dezenas de cadáveres foram encontrados nos escombros; os feridos são mais de 111 000; as ONG’s referem muitos milhares de pessoas, principalmente crianças psicologicamente traumatizadas.

Depois, a ONU estima que a Faixa de Gaza retrocedeu 69 anos. A ONU calcula que existam mais de 50 milhões de toneladas de entulho, devido à destruição provocada pelos bombardeamentos, que pode levar mais de 20 anos a ser removido e que isso terá um custo superior a 1 200 milhões de dólares, entulho esse que estará contaminado por amianto (utilizado nas construções nos campos de refugiados) e onde poderão estar restos humanos. Não se sabe ao certo quantas pessoas estão desaparecidas mas o Ministério da Saúde palestiniano calcula que são cerca de 10 000.

A ONU refere também que cerca de 69% do total das estruturas de Gaza ficaram destruídas. Isso significa que dois terços dos edifícios – cerca de 170 000 – foram danificados ou totalmente destruídos e a reconstrução nunca ficará concluída antes de 2040, provavelmente muito mais tarde. Quase dois milhões de pessoas precisam de ajuda urgente para conseguirem um abrigo.

A última estimativa do Banco Mundial já foi feita em Janeiro de 2024 – passou um ano – e referia danos no valor de 18,5 mil milhões de dólares. Edifícios residenciais, comerciais, indústriais, escolas, universidades, serviços de saúde, infraestruturas de energia e água, quase tudo ficou arrasado. As terras agrícolas ficaram destruídas e a Organização da ONU para a Alimentação e Agricultura (FAO) diz que 15 000 cabeças de gado (95% do total) morreram.

Numa listagem mais minuciosa, dados palestinianos mostram que foram destruídos 200 edifícios governamentais, 136 escolas e universidades, 823 mesquitas e três igrejas. A ONU refere que apenas 17 dos 36 hospitais estão a funcionar mas com muitas limitações.

UNRWA

Para acorrer no imediato às necessidades da população da Faixa de Gaza, todas as vontades e apoios são poucos, mas Israel mantém a decisão já aprovada no Parlamento de fazer cessar o trabalho da UNRWA (Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos) e o embaixador israelita escreveu a António Guterres (secretário-geral da ONU) lembrando que a UNRWA deve deixar todos os edifícios que mantém em Jerusalém oriental até 30 de Janeiro. Não se sabe se vai ser emitido aviso idêntico para a acção da UNRWA em Gaza e na Cisjordânia, mas o Parlamento israelita aprovou uma lei em que proíbe os responsáveis israelitas de contactarem/trabalharem com a UNRWA, o que pode inviabilizar a acção da Agência em todos os territórios palestinianos. A UNRWA é “só” a agência que tem valido aos palestinianos desde que foram forçados a ser refugiados.

Quem vai reconstruir Gaza?

Se as coisas correrem bem (durante o cessar-fogo) e se Gaza puder ser reconstruída, é indispensável manter as empresas israelitas afastadas desse processo de reconstrução e dos lucros que esse trabalho vai gerar. Tal como será inaceitável que o Estado de Israel possa cobrar quaisquer taxas ou impostos relacionados com os materiais necessários à reconstrução ou às empresas internacionais que venham a participar na reconstrução. Seria moralmente inaceitável para os palestinianos, e para a humanidade, ver aqueles que destruíram Gaza usufruírem dos lucros da reconstrução. Gaza terá de ser reconstruída com fortes apoios internacionais, incluindo da União Europeia. Isto significa que alguns dos nossos impostos servirão para devolver a esperança e a dignidade aos palestinianos sobreviventes. É assim que deve ser, mas apenas para isso: para devolver a esperança aos que atravessam um período de “não-vida”, como nos refere Rami Abou Jamous, no Oriente XXI.

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