
Israel atacou a Faixa de Gaza até ao último minuto antes do cessar-fogo entrar em vigor. O que é que isso mudou? Nada, a não ser acrescentar mais nomes à lista de mortos. O ministério da saúde de Gaza disse que o número de mortos em Gaza já passou dos 47 000 e as buscas nos escombros, desde o início do cessar-fogo, já recuperaram 62 corpos.
Para olharmos a guerra em Gaza podemos utilizar a lente da emoção ou a lente da racionalidade e da análise fria dos factos.
Através da lente emocional é impossível ficar indiferente ao sofrimento das vítimas. É assim em todas as guerras: famílias desfeitas, crianças que morrem ou ficam órfãs, gente que fica sem tecto, sem alimentos, sem água. Durante os últimos 15 meses, é difícil imaginar o sofrimento dos reféns israelitas e das famílias, tal como é difícil de imaginar o sofrimento dos prisioneiros e das famílias palestinianas. É assim que as coisas devem ser analisadas. Não há sofrimento apenas de um lado, o israelita, aliás, do lado palestiniano esse sofrimento tem sido muito mais prolongado no tempo e no número de pessoas atingidas. E há ainda uma diferença que não é um pormenor: os reféns israelitas tinham/têm um horizonte de libertação (mesmo que sem data definida), bastando para isso que a guerra terminasse e houvesse um acordo de cessar-fogo, enquanto os prisioneiros palestinianos não tinham esse horizonte: estavam totalmente à mercê da vontade das autoridades israelitas, muitos deles em prisão administrativa, sem conhecerem a acusação nem terem perspectiva de julgamento, mesmo que não seja um julgamento justo, como frequentemente tem acontecido.
E há uma outra diferença que não nos deve escapar: o tratamento que é dado aos reféns israelitas e aos prisioneiros palestinianos. Os reféns israelitas são tratados em cativeiro como pessoas que devem ser mantidas vivas e, se possível (devido à guerra), bem tratadas; os prisioneiros palestinianos são considerados “terroristas”, não têm qualquer valor para Israel e muitos morrem durante a prisão, são alvos de tortura e falta de assistência médica. Os governantes israelitas não se coíbem de anunciar a redução de alimentos https://www.haaretz.com/israel-news/2024-06-26/ty-article/.premium/israel-reduces-food-for-palestinian-security-prisoners-conceals-data-sources-say/00000190-542e-de5e-abd0-ff7ee9580000 horas de recreio, isolamento e ausência de visitas de familiares e advogados. Durante a trégua de novembro de 2023, as imagens da libertação de reféns e de prisioneiros palestinianos mostraram bem os sinais da diferença de tratamento que referi acima. Agora continuam a mostrar essa diferença. Este pequeno vídeo https://x.com/TheCradleMedia/status/1881078151356538990/video/1 divulgado pelo Hamas aquando da libertação das três primeiras reféns a 19 de janeiro de 2025, ilustra o que pretendo dizer. O médico israelita que recebeu as reféns disse que estavam bem e até agora não houve notícia em contrário. A mãe da refém Emily Damari disse à imprensa israelita que a filha “está em muito melhor situação (de saúde) do que nós esperávamos”. As imagens libertadas pelo exército israelita mostram as reféns sem sinais de maus-tratos.
Vários relatórios de Organizações Internacionais, como este da Amnistia Internacional ilustram o tratamento dado aos prisioneiros palestinianos e que é o oposto do que o Hamas tem para com os reféns. https://www.amnesty.org/en/latest/news/2024/07/israel-must-end-mass-incommunicado-detention-and-torture-of-palestinians-from-gaza/ .
A esta diferença de tratamento soma-se uma outra questão: Israel tem prisões onde, se quiser, pode manter os prisioneiros palestinianos, em condições dignas, sem o perigo de a qualquer momento, como acontece em Gaza com os reféns na posse do Hamas, haver um ataque que coloque em risco a vida dos próprios reféns (e admite-se que alguns tenham morrido nessas circunstâncias). Seria de esperar que os reféns, vivendo uma situação teoricamente mais precária, estivessem em piores condições de saúde do que os prisioneiros palestinianos nas prisões israelitas, mas do que se sabe até agora, não é isso que acontece.
Esta é a parte mais emocional – embora baseada em factos – com o sofrimento de prisioneiros, reféns e respectivas famílias a convocarem o coração de cada um de nós, pelo menos aqueles que tiverem um pingo de humanidade.
Depois, a parte mais racional da guerra. Porquê um cessar-fogo agora? Hamas e Israel reclamam vitória. Cada uma das partes diz que foi a outra a ceder. Israel diz que obteve garantias de Donald Trump de que terá apoio dos Estados Unidos para retomar a guerra, se o Hamas não cumprir o acordo; o Hamas diz que está disposto a continuar a luta se Israel não cumprir o acordo. Não saímos disto.
O que não deixa de ser surpreendente é a capacidade do Hamas para manter uma estrutura que lhe permite salvaguardar a vida de dezenas de reféns após 15 meses de bombardeamentos intensos de todo o território da Faixa de Gaza. Esse facto e a visibilidade de muitos combatentes do Hamas no momento da libertação das três reféns, são um sinal de que o Hamas está longe de ser eliminado e que, nesse aspecto, tal como no da libertação dos reféns através da guerra, Israel falhou os objetivos anunciados logo após o 7 de Outubro. E se Israel quiser concretizar o terceiro objetivo, o de não permitir que o Hamas esteja presente na governação de Gaza no pós-guerra, poderá estar a cometer um erro. Basta que nos lembremos da marginalização que os sunitas (e o partido Ba’ath) sofreram no Iraque pós Saddam ou a marginalização que os Taliban sofreram no Afeganistão após a invasão norte-americana que os afastou do poder. As coisas não acabaram bem. Tal como não acabaram bem – estamos assistir – em Gaza, quando após o Hamas vencer as eleições e tomar o poder, foi decidido isolar Gaza e o Hamas. Deu no que deu.
O que seria mesmo bom é que o acordo de cessar-fogo fosse levado até ao fim, permitindo um acordo de paz e a reconstrução da Faixa de Gaza. E já agora, que se pergunte aos palestinianos como querem ser governados. Nada se pode fazer, de forma duradoura, contra a vontade do povo.
