Punição colectiva…?

Nunca pensei ver no meu país algo que se parecesse com uma punição colectiva. As fotografias de uma enorme fila de pessoas voltadas para a parede com as mãos levantadas, vigiadas por polícias, sugerem que houve lugar à punição de um grupo específico de pessoas, porque forçar as pessoas a esta situação é uma punição. Não tem outro nome. Afinal, que suspeitas recaíam sobre aquelas pessoas para serem submetidas a tamanha humilhação?

É grave, porque são pessoas que nada tinham feito – ficou provado – que justificasse esta acção da polícia. Não havia motivo legal que permitisse à polícia actuar desta forma.

E digo que houve punição colectiva porque ela visou um grupo de pessoas, grupo esse que pode ser o dos imigrantes, os de pele diferente da maioria dos portugueses ou, simplesmente, os frequentadores e moradores da Rua do Benformoso, junto à Praça do Martim Moniz, em Lisboa. Foi uma acção que visou, claramente, um grupo de pessoas para as punir (e intimidar?) colectivamente.

As explicações do Primeiro-Ministro não convenceram ninguém e as da Ministra da Administração Interna, com a inépcia do costume, ainda menos. Se a acção foi apenas da responsabilidade da PSP, foi grave; se partiu de uma orientação do governo, é ainda mais grave. Ninguém pode estar acima da lei, mas todos somos protegidos pela lei.

Num Estado de Direito democrático não há lugar a punições colectivas. Essa é uma actuação típica de Estados governados pela extrema-direita, como Israel, que utiliza esse tipo de acções em Jerusalém ou na Cisjordânia ocupada para punir (de forma colectiva) os palestinianos, destruindo habitações e expulsando famílias inteiras. Em Portugal, não pode haver lugar a esse tipo de conduta por parte das autoridades.

Este é o momento para dizermos que não queremos Portugal a ser policiado desta forma, porque o que aconteceu não é algo com uma importância menor. É algo que revela que há quem sinta que tem poder para espezinhar os Direitos Humanos e a Constituição da República. A esses, é preciso dizer NÃO! Neste momento, calar é consentir, e todos sabemos ao que estas derivas podem levar.

Transcrevo a seguir um artigo de Eurico Reis, Juiz Desembargador Jubilado, divulgado pelo próprio e publicado na edição online da Revista Sábado, que descreve muito melhor do que eu tudo o que está em causa.

OS VENTOS DE OESTE – E ESTAMOS NO NATAL! OLHA SE NÃO ESTIVESSEMOS?

Não, não estou a faltar à minha promessa. Apesar do título, este texto continua a ser alusivo ao sistema judiciário.

Acontece apenas que a rusga efectuada pela PSP no passado dia 19 de dezembro constitui um atentado à Democracia e ao Estado de Direito demasiado grave para poder ser deixado em claro. Já não o está e o que está a ser feito é muito importante, mas, como adiante justificarei, é ainda muito pouco. Demasiado pouco.

Em todo o caso, convirá, à partida, clarificar que, em minha opinião, o subsistema penal do sistema judiciário começa a funcionar no momento da prática de um acto que na legislação em vigor é considerado e definido como um crime, e só cessa a sua actividade no exacto momento em que termina o cumprimento pelo arguido da pena que foi condenado a suportar.

Aliás e em boa verdade, porque a função social da jurisdição penal, tal como foi definida – e bem – pelos juristas alemães do seculo XIX (mais exactamente, ao definirem conceptualmente que são três os fins/finalidades das penas: função de prevenção geral, função de prevenção especial, e finalidade restitutiva ou reparativa), por razões de prevenção geral, os serviços de informações e de segurança interna devem, ou melhor, têm forçosamente de ser convocados para coadjuvar as forças policiais (órgãos de polícia criminal, como agora “é fino” dizer e escrever, até na letra da lei) e o Ministério Público no combate à criminalidade – ou, eventualmente, até os Tribunais de Instrução Criminal, mas aqui, já não nessa vertente de prevenção e tão somente, o que não é pouco, no apuramento da verdade dos factos, isto é, para “separar o trigo do joio”, libertando essa verdade factual do peso perigosamente entorpecedor das mentiras, deturpações e mistificações ardilosamente construídas para se parecerem, e aparecerem, como se verdades fossem.

Portanto, o subsistema penal do sistema judiciário continua aqui na berlinda.

Passemos, então, à rusga realizada no passado dia 19 de dezembro que, não sei se foi ou não uma coincidência, teve lugar 9 dias depois de, através de várias iniciativas, termos em Portugal, como aconteceu em outras partes do Planeta, comemorado, a 10 de dezembro, o “Dia dos Direitos Humanos”, homenageando o 76º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada e proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948.

É obra.

E, insisto, para que nunca jamais possa ser esquecido, que o primeiro dos direitos do catálogo dos direitos humanos aquele através do qual se estabelece que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”, e que no número um do 11º se afirma que “Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”.

E muito mais vale esse princípio quando às pessoas visadas não foi sequer imputada a prática de um qualquer acto criminoso. 

Efectivamente, de que actos criminosos concretos foram acusados os seres humanos que foram obrigados colocar-se de mãos no ar, contra a parede de prédios sitos na Rua do Benformoso, em Lisboa, na zona do Martim Moniz, numa forma demasiado semelhante à que é retratada em fotos tiradas pelos nazis no gueto de Varsóvia, visando os judeus que aí viviam?

Que fique claro: não estou a afirmar que a acção da PSP em causa tem uma gravidade igual a esse agora aludido comportamento praticado pelos nazis no gueto de Varsóvia. Mas, quem está tão preocupado com “percepções” e “visibilidades” – mais a mais quando, segundo os dirigentes máximos da PSP, a operação estava a ser preparada há já algum tempo, -, não pode nem deve cometer um tamanho deslize.

Mais faço aos “planeadores” da rusga a justiça de pensar que nenhum deles se lembrou ou sequer sabia que o artista militante do Partido Comunista José Dias Coelho foi assassinado pela PIDE no dia 19 de dezembro de 1961.

Presumo que nem esses “planeadores” nem os membros do actual governo, incluindo o primeiro-ministro Luís Montenegro, conhecem a emblemática canção de José (Zeca) Afonso “O pintor morreu”.

Enfim, cada um cultiva as memórias que lhe interessam. É pena.

Mas a ignorância (e por aqui me fico, descartando eu a hipótese da existência de má-fé) manifestada por esses “planeadores” e por aqueles que executaram o plano – a PSP não poderia ter feito o que fez sem a cobertura do Ministério Público (e duvido muito que não tivessem também o apoio político do governo, incluindo o primeiro-ministro – de facto, a postura deste último quando confrontado com as críticas que foram sendo feitas é, a meu ver, muito esclarecedora), esperando eu que nenhum juiz esteja envolvido nesta perigosa trama – não se fica só pela História.

Efectivamente e muito provavelmente, nenhuma dessas pessoas, nenhuma mesmo, ouviu alguma vez falar de uma lei da Física chamada a Terceira Lei Newton (e as leis da Natureza, ao contrário da legislação produzida pelos seres humanos, não variam com os humores e os níveis de consciência das pessoas), que afirma que “para todas as forças de ação, surgem forças de reacção com intensidades iguais, mas sentidos opostos”.

Ou seja, desta acção policial, totalmente desproporcionada e não equitativa face às concretas condutas praticadas no dia 19 de dezembro pelas vítimas desse atropelo aos mais fundamentais direitos humanos consagrados Declaração Universal dos Direitos Humanos, e também na Constituição da República Portuguesa e na Lei Ordinária do país, só pode resultar o reforço da influência daqueles que consideram (e agem em conformidade com essa convicção pessoal) que é legitimo violar as leis em vigor no território nacional.

Em suma, completamente ao contrário do que está a ser propalado pelos “planeadores” e por aqueles que executaram o plano posto em marcha no dia 19 de dezembro em Lisboa, na zona do Martim Moniz, e mais concretamente na Rua do Benformoso, desta acção resultou, isso sim e em termos objectivos, um aumento da insegurança e do risco de ocorrência de novas práticas criminosas, perigos esses para a segurança dos cidadãos individuais, das empresas e do próprio Estado a que só uma forte, consistente, coerente, persistente e sistemática actividade das forças democráticas em defesa dos direitos humanos, da Democracia e do Estado de Direito poderá obviar.

A actuação policial que aqui e agora critico, e que é típica de um ditactorial Estado Policial, violou princípios civilizacionais fundamentais como são o princípio da equidade e da proporcionalidade e, consequentemente, atacaram e puseram em causa, de forma violenta, a Democracia e o Estado de Direito.

O que é inaceitável e verdadeiramente intolerável.

Que raio de formação está a ser ministrada na Escola Prática de Polícia? E quem são os formadores dos agentes da PSP que aí exercem funções?

Para cumprir fielmente as suas obrigações para com o Povo que os elegeu, os deputados da Assembleia da República não têm apenas de exigir – repito EXIGIR – uma extensa e profunda prestação de contas aos membros da Direcção Nacional da PSP, à Ministra da Administração e ao primeiro-ministro, têm também de exigir essa prestação de contas aos dirigentes da Escola Prática de Polícia e aos formadores que aí exercem funções, e, para além disso, têm que perscrutar muito bem e também com grande profundidade, os programas e as práticas ministradas nessa Escola.

E deve igualmente ser verificado qual o papel do Ministério Público e, eventualmente, de algum juiz de instrução no desencadear dessa acção da PSP, para que, se necessário, possam ser desencadeados os procedimentos legalmente previstos.

O que aconteceu no dia 19 de dezembro em Lisboa, na zona do Martim Moniz, e mais concretamente na Rua do Benformoso, é demasiado grave e perigoso para a subsistência da Democracia e do Estado de Direito para ser esquecido no vórtice de superficialidade e futilidade em que está transformada a vida política do país.

Isto não é, de todo, um regular funcionamento das instituições.

Cabe a todos e a cada um de nós, enquanto cidadãos responsáveis, velar pela consagração, na concreta e real prática quotidiana e não apenas nas palavras ocas dos discursos, da Democracia e do Estado de Direito, mas é indispensável nunca esquecer que o Presidente da República e o Parlamento, que são os únicos Órgãos de Soberania com legitimidade eleitoral directa, têm forçosamente de agir, rapidamente e com firmeza, na prossecução desse objectivo, pois a eles compete, em primeira linha, defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República.

Espero que não seja necessário chegar a esse ponto, mas às vezes justifica-se plenamente a apresentação de moções de censura aos governos. Mais não seja, para separar as águas, tornando claramente perceptível aos olhos de toda a gente quem são os defensores e quem são os inimigos dos direitos humanos, da Democracia e do Estado de Direito.

Eurico Reis 

Juiz Desembargador Jubilado

Presidente da Direcção da Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória (NAM)

Vice-presidente da Direcção da Liga Portuguesa dos Direitos Humanos – Civitas (LPDH-C)

Ex-presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA)

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