
Para quem tinha decretado a (exagerada) morte da Primavera Árabe, a queda de Bashar Al Assad às mãos dos rebeldes sírios deve constituir um momento de reflexão e é também a prova de que as ditaduras, mais tarde ou mais cedo, acabam no caixote do lixo da História. É certo que depois de uma ditadura outra ditadura pode vir, mas só mais à frente saberemos como vai ser.
Para já, Assad caiu e Abu Mohammed Al Golani, líder do Hayat Tharir Al Sham, pede aos novos “conquistadores de Damasco” que sejam humildes na vitória e que não procurem a vingança. Nas poucas horas após a fuga de Assad para Moscovo, as coisas parece que não estão a correr mal. O próprio Al Golani ordenou aos combatentes rebeldes para não tocarem nas instituições do Estado porque elas, por agora, ficam sob a supervisão do até aqui primeiro-ministro, Mohammed Al Jalali. Esta colaboração com o líder do governo sírio podem significar que para além do regime ter caído devido à luta armada, também caiu por dentro, implodiu, com alguns dos seus membros a passarem-se para o campo rebelde.
Há apenas dois ou três dias quando me perguntavam se seria desta que Assad iria cair, sempre respondi que ao longo de 13 anos várias vezes pareceu estar quase a cair mas tal nunca aconteceu e que, se fosse mesmo desta vez, talvez ainda demorasse uns dias. Afinal, não demorou, tendo sido surpreendente a rapidez do avanço rebelde e mais ainda a facilidade com que conquistaram a capital, Damasco.
Assad teve uma réstia de bom senso?
As imagens que chegam de Damasco transportam-nos para outros momentos como a queda de Muammar Kadhafi, na Líbia, ou de Saddam Hussein, no Iraque, quando a ira popular atingiu os palácios e os símbolos do regime. Até agora, poucas horas passadas após a fuga de Assad, não há notícia de actos de vingança ou perseguição a servidores do regime. Talvez devido a uma incapacidade absoluta, Assad parece ter tido uma réstia de bom senso e humanidade não dando qualquer ordem para que os militares e as forças de segurança resistissem ao avanço das forças rebeldes. Terá evitado um banho de sangue.
Muitos anos de guerra
Apesar de tudo isto, é bom não esquecer que foram mais de 13 anos de guerra. Talvez meio milhão de mortos. Dezenas de milhares de presos e torturados. Milhões de sírios forçados a procurar refúgio noutros países. A Síria viveu o terror da presença da organização Estado Islâmico. Durante todo este tempo, muitos grupos de milícias beneficiando de diferentes apoios estiveram no terreno, numa sucessão de alianças de conveniência circunstancial. Muitas destas milícias tinham génese religiosa e muitos do seus elementos passaram por grupos violentos e fundamentalistas, não sendo de estranhar que alguns dos actuais combatentes rebeldes tenham tido algum tipo de ligação à organização Estado Islâmico.
Minorias
A Síria é um país fragmentado. Em termos muito gerais, os árabes sunitas representam 70 a 75% da população; os curdos, cerca de 10%, controlam a região nordeste entre o Rio Eufrates e as fronteiras com o Iraque e a Turquia; os xiitas alauitas (de que a família Assad fazia parte) são entre 10 a 15% da população e estão concentrados na zona de Lataquia, a sul da Turquia, junto ao Mediterrâneo; os drusos estão na região sudoeste; os cristãos distribuídos um pouco por todo o país.
O líder do Hayat Tharir Al Sham prometeu respeitar as minorias e disse que a Síria será um país para todos os sírios. Nesta afirmação há um pequeno sinal de esperança, mas será avisado esperar para ver como será a relação do novo poder (que ainda não conhecemos) com essas minorias, algumas delas tão maltratadas pela família Assad.
Por agora, a queda de Assad e a incerteza quanto ao futuro da Síria dão vantagem a dois actores regionais. Por um lado a Turquia, que mantém presença militar no norte da Síria, apoia algumas milícias sírias e tem como primeiro objetivo combater os curdos e evitar qualquer veleidade destes junto à fronteira. A Turquia já conquistou terreno aos curdos e o presidente Erdogan declarou apoio aos rebeldes que chegaram a Damasco; por outro lado, Israel, que também aproveitou o momento para ocupar terreno na região dos Montes Golã (para além do território que já anexara à margem do Direito Internacional) e bombardear bases militares sírias, enfraquecendo desde já o poder que vier a ser estabelecido na Síria.
Derrotados
A derrota de Bashar Al Assad é também a derrota da Rússia e do Irão. Os dois países que ajudaram Assad a manter o poder após a revolta iniciada em 2011 não conseguiram ser eficazes perante a contraofensiva rebelde. A Rússia, com atenções centradas na guerra na Ucrânia; o Irão concentrado no confronto directo com Israel e na guerra no Líbano, onde o Hezbollah foi fortemente amputado nas lideranças e na capacidade militar. Com a queda de Assad, parece evidente a ruptura do “eixo da resistência” que ligava quatro capitais: Teerão, Bagdad, Damasco e Beirute.
A Rússia diz que obteve garantias dos rebeldes para manter em segurança as bases militares que mantém na Síria e pretende dialogar com todas as facções sírias. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden, a poucos dias de deixar a Casa Branca, disse que regista as palavras dos líderes rebeldes mas vai ficar à espera dos actos, mantendo a presença militar norte-americana na Síria.
Quanto ao vizinho Iraque, depois de algumas hesitações e movimentações militares junto à fronteira, um porta-voz do governo declarou que é importante respeitar a vontade de todos os sírios e manter a segurança, integridade territorial e independência da Síria.
Futuro
A queda de Assad, embora 13 anos depois do início das revoltas da Primavera Árabe, é fruto desse momento. Um fruto tardio, é certo, tardio e extremamente caro em termos de vidas perdidas, sofrimento e sacrifícios sem fim, não se sabendo se esse preço fica por aqui porque não vão ser fáceis os dias que a Síria tem pela frente. Talvez a memória de 13 anos de guerra possa contribuir para o estancar da violência e o início de construção de um futuro onde caibam todos os sírios, mas ainda é muito cedo para perceber como é que todos os interesses que se manifestam na região vão ser acomodados para que as “placas tectónicas” possam sossegar.
