
Beirute, 20 de Outubro, 01h14 – É difícil adormecer enquanto a Al Jazeera mostra a tragédia na Faixa de Gaza. Mais uma vez, mais um dia, muitos corpos alinhados, no chão, envolvidos em mortalhas brancas, rodeados por pessoas de olhar perdido, muitas vezes a chorar, expressões de desespero. As ambulâncias correm para hospitais que quase não existem e onde os médicos e enfermeiros estão esgotados e sem meios, nem forças, para socorrer quem precisa.
As pessoas estão constantemente a ser empurradas para novos locais alegadamente seguros. Depois, acabam por morrer, sem saber porquê.
Nas últimas horas, cinco edifícios residenciais foram bombardeados no campo de refugiados de Beit Lahia. A Defesa Civil de Gaza revela a morte de 73 pessoas, outras fontes garantem mais de uma centena de mortos. Já nem se fala de feridos…
As denúncias
A chefe interina da ONU para os assuntos humanitários, Joyce Msuya, diz que os palestinianos no norte da Faixa de Gaza estão a viver “horrores indescritíveis sob o cerco das forças israelitas”. “Estas atrocidades devem parar”, acrescentou. E o relato continuou: “Em Jabalia, as pessoas ficam presas nos escombros e os socorristas não conseguem chegar aos locais onde estão”; “Dezenas de milhares de palestinianos são deslocados à força. Os bens básicos estão a esgotar-se. Os hospitais, sobrecarregados de doentes, foram afetados”, descreveu.
É devido a estes relatos e denúncias que Israel não gosta das Nações Unidas; é devido ao trabalho – com defeitos e certamente muitos problemas – das agências das Nações Unidas que os desafortunados da história ainda conseguem sobreviver e alumiar a esperança possível num futuro onde o governo extremista e supremacista de Benjamin Netanyahu preferia que não tivessem lugar. É por tudo isto e pela coragem que nenhum outro secretário-geral da ONU tinha tido até agora que Israel não gosta da ONU e ainda menos de António Guterres. Lembro-me bem de ver Ban Ki-moon (antigo secretário-geral) a dar uma conferência de imprensa, em janeiro de 2009, em Siderot, tendo como pano de fundo os restos dos rocket’s rudimentares que o Hamas lançava para território israelita (Palestina ocupada, na perspectiva do Hamas). Há 15 anos, os planos israelitas que agora recusam abertamente o Estado palestiniano, estavam num outro estádio, mas a presença de Ban Ki-moon serviu perfeitamente a estratégia há muito delineada. Ainda bem que Guterres não se deixou instrumentalizar.
O mundo recusa ver
Olhando para os números – cada um é uma pessoa e tem um nome – é impossível aceitar que o mundo continue cego à desgraça que os palestinianos estão a viver e que os líderes internacionais continuem a enganar-nos com tímidos pedidos de contenção a Israel e com ameaças ainda mais tímidas de embargo de venda de armas (como se fosse possível verificar quais as armas que Israel utiliza em Gaza contra a população civil). Nunca a hipocrisia atingiu este nível e nunca nos envergonhou tanto. Alinhamento atlantista a isso obriga. Washington impõe as regras e cada um que encontre os argumentos que quiser.
Em Gaza, desde 7 de Outubro de 2023, foram mortas 42 519 pessoas (17 029 eram crianças – 70% das vítimas eram mulheres e crianças) e quase 100 000 ficaram feridas; 176 jornalistas e trabalhadores dos media já foram mortos em Gaza, segundo o gabinete de imprensa de Gaza; 228 trabalhadores das nações unidas morreram em Gaza desde 7 de outubro. Falta ainda saber quantos corpos estão sob os escombros.
A esmagadora maioria dos que sobreviveram até agora não têm casa nem meios de sobrevivência. São mais de dois milhões. Já imaginaram o Inverno a chegar a Gaza?
Durmam bem.
Beirute, 20 de Outubro de 2024
jmr
