
Um amigo que conhece bem a Palestina contou-me uma história que agora partilho. Lembrei-me desta história depois de nas últimas horas (e desde há 10 meses em Gaza) termos assistido à violência das forças israelitas contra jornalistas.
Vinha esse meu amigo de regresso a Jerusalém, com outro jornalista e o motorista palestiniano, depois de uma reportagem na Cisjordânia, Ramallah, ali a meia-dúzia de quilómetros.
Checkpoint
Na triagem (não muito) aleatória dos carros que paravam no checkpoint israelita, tocou-lhes em sorte. Documentos, passaportes, jornalistas calados porque quanto menos se fala melhor, o diálogo foi entre o motorista e a militar que verificava os documentos: “de onde vêm?”. “De Ramallah”, respondeu o motorista, fazendo com a cabeça um gesto que indicava Ramallah lá para trás. “Gaza!?”, perguntou a militar israelita. “Não, Ramallah”, retorquiu o motorista. “Não, ali – apontou para o sítio de onde vinham – é Gaza”, disse a militar. “Não, Gaza é para a frente”, disse o motorista, apontando para a frente. Discutiram sobre onde seria, afinal, Gaza. Nestes casos, quem tem uma arma, manda. “Já disse que ali é Gaza” respondeu irritada a militar, dando ordem para toda a gente sair do carro. Uma discussão surreal que traduz o absurdo da realidade nesta zona do mundo e ajuda a perceber, embora de forma caricata, o conflito entre israelitas e palestinianos.
A palavra de uma militar israelita confrontada com a palavra de um palestiniano, não era admissível. Aliás, era “intolerável”! Pior ainda, uma militar israelita confrontada por um palestiniano e logo na presença de dois estrangeiros. Ela dizia que eles vinham de Gaza, e tinha de ser Gaza, mesmo que Gaza ficasse na direcção oposta, como dizia o motorista palestiniano. Não adianta ter razão.
Quem tem armas tem poder
Todos para fora do carro, com o motorista a ser agarrado e retirado à força. Tudo o que estava dentro do carro retirado e atirado à bruta para o asfalto. O motorista foi levado para um contentor para ser interrogado e uma das perguntas que lhe fizeram foi para saber porque andava ele a transportar jornalistas para verem o que se passava na Cisjordânia. Entre avisos e ameaças lá o soltaram. Enquanto o motorista esteve desaparecido da vista foram os jornalistas a ser molestados. Havia o “militar bom” que dizia para estarem calmos porque não havia problema, não era nada com eles, e havia o “militar mau” (pequenino) que enchia o peito e esticava o pescoço para tentar chegar à altura dos jornalistas e, de olhos esbugalhados, perguntava: “do you love Israel or not”?, “tell me, do you love Israel or not?”. Um homem nos antípodas de perceber que o amor nunca se conquista assim. Outros “militares bons” acalmaram-no, mas o homem (pequenino) espumava.
Depois chegaram polícias. De trânsito, admite o meu amigo. Documentos dos carros passados a pente fino. Parecia a inspecção automóvel: ligue os piscas, as escovas do para-brisas, meta a marcha atrás, a buzina, luzes, mínimos, médios, máximos, pé no travão… em cima do capô foi passada a multa: umas dezenas largas de euros porque o para-brisas estava estalado…
O motorista palestiniano e os jornalistas seguiram viagem. Este palestiniano tinha idade para ser avô de qualquer um dos militares que o tentaram humilhar. Essa tentativa de humilhação estava estampada na respiração mais rápida do que o habitual e nos olhos vermelhos que não verteram uma lágrima. Mas os olhos também tinham um brilho especial: ele sabia onde era Gaza e isso nunca iria mudar. E por muito que a militar israelita quisesse, Gaza não vai sair de onde está.
Cisjordânia/Gaza
Passado este tempo, esta história oferece outra possibilidade de leitura: a Cisjordânia enfrenta nos últimos dias uma ofensiva israelita como uma intensidade que não acontecia desde a segunda Intifada. Jenin, Tulkarem, Nablus… a ofensiva israelita já provocou mais duas dezenas de mortos. Desde 7 de Outubro de 2023 – ataque do Hamas junto à fronteira da Faixa de Gaza – a Cisjordânia já regista quase 700 mortos, para da destruição e talvez, um dia destes, deslocação forçada da população, como já admitiu um ministro israelita. Percebo agora muito melhor esta história que o meu amigo me contou e por que é que a militar deste checkpoint insistia que Ramallah e a Cisjordânia também eram Gaza. Afinal, talvez tivesse razão: onde há palestinianos é tudo igual porque, na perspectiva de muitos israelitas, simplesmente não deviam lá estar.
O meu amigo contou-me assim esta história e tenho absoluta confiança nele, podendo garantir-vos que tudo isto foi mesmo assim.
