Mortes que matam o cessar-fogo

Ismail Haniyeh (com a criança de uniforme militar) durante um funeral na Faixa de Gaza. foto: arquivo jmr/07 de junho de 2017

Teerão, Beirute, Damasco… três capitais recentemente atingidas por ataques israelitas. A máquina israelita de assassínios selectivos funciona há décadas. Mas a eficácia, indiscutível, da referida máquina, tem dois problemas: o primeiro é o de funcionar à revelia do Direito Internacional; o segundo é o de, apesar de atingir objetivos imediatos, assassinando pessoas influentes no campo inimigo e provocando uma momentânea desorganização, acaba por galvanizar os inimigos. Não por acaso, nas horas seguintes ao ataque, em Beirute, que terá eliminado Fouad Chokr, importante quadro do Hezbollah, a palavra de ordem dos jovens nas ruas do sul da capital libanesa revelou a disponibilidade para continuar a missão de Fouad Chokr: “(Hassan) Nasrallah, (estamos) às tuas ordens!”. Falta saber o que o líder do Hezbollah vai decidir.

Poucas horas depois, em Teerão, Ismail Haniyeh, líder político do Hamas, foi vítima de um outro ataque, que Israel ainda não assumiu, mas que não deixa margem para dúvidas relativamente à autoria. Recorde-se que, em Janeiro de 2024, também em Beirute, um ataque israelita matou o número dois da liderança política do Hamas, Saleh Al Arouri.

Mortes que nada mudam

Nada disto alterou ou vai alterar a política e a determinação do Hamas, como aliás o próprio Haniyeh tinha dito depois de ter perdido filhos e netos durante um ataque israelita na Faixa de Gaza: “todo o nosso povo e todas as famílias de Gaza pagam um pesado tributo de sangue, e eu sou um entre eles”. Há poucas horas, um filho de Haniyeh, Abdul Salam Ismail Haniyeh, reagiu assim à morte do pai: “Estamos num estado de revolução contínua e de luta contra a ocupação” (…) “a resistência não terminará com o assassinato dos dirigentes e o Hamas continuará a resistir até à libertação”.

Israel já decapitou várias vezes a liderança do Hamas e já devia ter percebido que não é assim que derrota o Movimento palestiniano. Em 2004, matou o fundador do Hamas, Ahmed Yassin, à saída de uma Mesquita, em Gaza, e poucos meses depois matou o sucessor de Yassin, Abdel-Aziz al-Rantissi . Israel tentou ainda matar Khaled Meshaal, em 1997, que viria depois a ser líder do Hamas, mas o plano falhou: dois agentes da Mossad enveneram Meshaal, na Jordânia, mas foram apanhados e a Jordânia só os libertou depois de Israel fornecer o antídoto que permitiu salvar a vida de Khaled Meshaal.

No caso do Hezbollah, em 1992, Israel também já tinha assassinado o líder do Movimento, Abbas Moussaoui, líder que antecedeu Hassan Nasrallah, e muitas outras figuras de primeira linha do Movimento libanês foram também assassinadas ao longo do tempo sem que isso tenha retirado capacidade ao Hezbollah.

Negociações sabotadas

É certo que as negociações para se chegar a um cessar-fogo na Faixa de Gaza não têm produzido resultados, a não ser a pausa em Novembro de 2023 que permitiu libertar alguns reféns e prisioneiros, mas com estes ataques israelitas, até o Qatar, um dos países mediadores, já veio dizer que é muito difícil continuar a negociar quando uma das partes mata a liderança inimiga. Os ataques de Israel vieram demonstrar quem não quer chegar à paz na Faixa de Gaza e, talvez ainda pior, ao matar Ismail Haniyeh em Teerão, quem quer ver a guerra ganhar dimensão e envolver outros países.

Fica muito claro que o assassinato de Ismail Haniyeh é um acto de sabotagem das negociações, porque não é aceitável que Israel possa matar os negociadores com quem se senta à mesa para, alegadamente, negociar um cessar-fogo e a libertação dos reféns.

Para além disso, o ataque para matar Haniyeh, em Teerão, é uma provocação e um desafio ao Irão. Quem tem defendido a contenção, de modo a evitar um escalar do conflito, terá de analisar os ataques israelitas sob este prisma. Dificilmente o Irão deixará de responder a este ataque à sua soberania e muito dificilmente o Hezbollah deixará de retaliar. No Líbano, o apoio ao Hamas cresce entre as diferentes facções dos campos de refugiados palestinianos, principalmente entre os jovens. Que ninguém se admire se a guerra ganhar uma nova dimensão.

Sucessão na liderança do Hamas

Quando à sucessão de Ismail Haniyeh na liderança do Hamas, não é claro quem possa ser nem como vai ser o processo num difícil momento de guerra. Dois nomes principais são já apontados: Moussa Abou Marzouk e até o anterior líder Khaled Meshaal. Mas são apenas dois nomes entre os quadros do Movimento palestiniano com longa experiência na resistência palestiniana. Um nome que para já parece afastado é o de Yahya Sinwar. O actual líder do Hamas na Faixa de Gaza estaria fortemente limitado em todo o tipo de negociações, para além de estar no “ponto de mira” israelita.

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