
O Le Point foi feliz ao caracterizar a decisão de Emmanuel Macron quando convocou eleições legislativas antecipadas: foi “o dia em que Narciso partiu o espelho”. De facto, se a extrema-direita está às portas do poder, Macron é o principal responsável.
Com um primeiro mandato (2017-2022) marcado pelas manifestações dos coletes amarelos, pandemia Covid e guerra na Ucrânia, Macron conseguiu convencer os franceses de que as dificuldades obrigavam a decisões difíceis que impediam a solução de alguns problemas e a satisfação de reivindicações. Depois, apanhou um susto, mas conseguiu ser reeleito em Abril de 2022. Na noite da vitória reconheceu que muitos dos que tinham votado nele, não o fizeram por concordarem com o seu programa político mas para impedirem a líder da extrema-direita, Marine Le Pen, de chegar ao Palácio do Eliseu. Macron até foi mais longe e disse que ia ter esses votos (da esquerda) em conta no segundo mandato, prometendo um recomeço e não a continuação do primeiro mandato. Promessas rapidamente esquecidas com a França em convulsão permanente, particularmente nos primeiros seis meses de 2023 em que 13 dias (não consecutivos) de manifestações contra a alteração da idade da reforma provocaram o caos e consumaram o divórcio de Macron com os Franceses. Quase 80% dos franceses estavam contra a alteração da idade da reforma, mas Macron seguiu em frente. Tal como seguiu em frente o governo, que não se cansou de utilizar o artigo (49.3) da Constituição. Um artigo que permite a aprovação de leis sem votação na Assembleia – a chamada “passagem em força”. Foi assim com a alteração da idade da reforma e com muitas outras leis. Isto é, Macron e o Governo não ouviram a rua – a democracia social que muitos reivindicam – e foram incapazes de gerar consensos na Assembleia onde o campo político do presidente deixou de ter maioria após as legislativas de 2022. Não por acaso, Macron é frequentemente caricaturado com as vestes de Napoleão.
Ricos e pobres
Emmanuel Macron, o mais jovem presidente de França, foi eleito com essa aura de juventude que anunciava uma nova forma de exercer o poder, de pragmatismo, com a promessa de “nem à esquerda, nem à direita”, como se isso fosse uma virtude. Rapidamente se percebeu que as decisões eram sempre à direita. O ADN liberal de Macron e do respectivo séquito não deixavam campo a outro tipo de decisões. O brutal aumento do fosso entre os mais ricos e os mais pobres está aí para o provar: um sinal de que a redistribuição de riqueza nos sete anos de poder de Emmanuel Macron foi uma miragem. E essa é a origem da esmagadora maioria dos problemas: pessoas cada vez mais pobres, exploração de mão-de-obra imigrante atirada para guetos, pais e mães obrigados a dois e três empregos, sem tempo para cuidar dos filhos, que por sua vez, entre a ausência dos pais e o fraco rendimento escolar, caem facilmente num tipo de vida que não poucas vezes entra na criminalidade.
Dança de cadeiras
Macron mudou de governos, de Primeiros-ministros (quatro, em sete anos) e acabou por confiar a Gabriel Attal – um excelente comunicador, que foi ministro por duas vezes, secretário de estado outras tantas e ainda porta-voz do governo, tudo isto em sete anos, antes de ser primeiro-ministro e depois de ser porta-voz do partido de Macron – a tarefa de tentar colar os cacos, chamando-o à liderança do governo alguns meses antes das eleições europeias. O problema é que já tinha passado o tempo de ver problemas resolvidos só através da comunicação: as pessoas, com razão, deixaram de acreditar.
De facto, como é possível acreditar quando, já em campanha eleitoral, o primeiro-ministro lançou a promessa de reduzir o preço do gás no inverno, depois de o ter aumentado 11,7% (entrou em vigor a 1 de Julho); prometeu também suspender a entrada em vigor das alterações que as condições de acesso ao subsídio de desemprego, mas então porque carga d’água as aprovou há tão pouco tempo? Attal disse também já em campanha eleitoral que prometeu a si próprio não voltar a utilizar o tal artigo 49.3. Chega tarde. Os governos de que fez parte desperdiçaram dois anos para deixar de lado o famigerado artigo.
Políticas falhadas
As políticas de Macron falharam política e socialmente, e falharam também em termos de finanças públicas. O défice e a dívida pública cresceram e não dão sinais de aproximação às regras orçamentais da União Europeia. É caso para perguntar para onde foi/vai o dinheiro?
As políticas falharam e o jovem presidente já não consegue convencer ninguém de que tem alguma coisa nova para fazer ou mostrar. Aliás, prometeu isso em 2017 e voltou a prometer em 2022, no dia da reeleição. Não cumpriu. Foi incapaz de dialogar e criar consensos.
Quais “extremos”?
Já em campanha eleitoral, Macron continuou a diabolização da esquerda, forçando a comparação dos “extremos” até à exaustão, como se a esquerda fosse semelhante ao que a extrema-direita representa, e acenou com o espantalho da “guerra civil”: dificilmente poderá ser acusado de outra coisa a não ser de uma enorme irresponsabilidade, contribuindo para um clima de medo e ansiedade, abrindo ainda mais o caminho à extrema-direita.
Basta ouvir os franceses que agora votam no Rassemblement National: querem correr com Macron, querem melhor poder de compra, querem estabilidade e segurança… vão tentar, dizem eles, votando Rassemblement National. Obviamente estão enganados, mas ninguém os pode criticar.
Quando as coisas correm mal tempo demais, as pessoas deixam de acreditar nos políticos que têm exercido o poder e tendem a acreditar – ou a dar uma oportunidade – a quem nunca o exerceu.
Normalização
Para chegar às portas do poder a extrema-direita adocicou o discurso. O papel de “mau da fita” foi deixado a Eric Zemmour, líder do Reconquête, “levado ao colo” por um grupo de media. Zemmour, várias vezes condenado por difamação, incitamento ao ódio, racismo, diz agora o que a extrema-direita pensa, retirando ao Rassemblement National o peso de ter de dizer coisas que já disse anteriormente, particularmente quando o partido (então Front National) era liderado Jean-Marie Le Pen. Isto não quer dizer que exista uma estratégia concertada. Significa apenas que Marine Le Pen e Jordan Bardella perceberam que Zemmour é o ventríloquo involuntário (ou não) que faz o serviço que eles já não precisam de fazer e até podem dar uma imagem mais moderada de um Rassemblement National disposto ao debate parlamentar e aberto a alianças com a direita “respeitável”.
O que é estranho é ver pessoas do círculo de Emmanuel Macron admitirem poder votar no Rassemblement National. Afinal, de que tipo de gente Macron está rodeado? Aqui chegados, não estranhemos as decisões dos últimos sete anos e não estranhemos também que esse tipo de gente esteja mais preocupada em garantir um lugar e um salário junto do poder, seja ele qual for, do que em evitar que a França entre num tempo de pesadelo. A extrema-direita é neofascista, a começar pela estética, como lembra o filósofo Diogo Sardinha em entrevista à RFI extrema-direita-As-portas-do-poder-mas-esquerda-tem-margem-de-manobra .
Serão fascistas todos os eleitores do Rassemblement National? Evidentemente que não. Mas o jogo de sombras do “nem à esquerda nem à direita” está a terminar: esquerda e direita, afinal existem. Agora, é preto ou branco. O boletim de voto não tem a opção cinzento.
Dia 7 de Julho, na segunda volta das legislativas, os franceses decidem a França que pretendem. Uma semana depois, 14 de Julho, celebra-se a tomada da Bastilha.
