Atlantismo beato

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia e Joe Biden, presidente dos Estados Unidos da América, em setembro de 2022 durante uma Conferência em Nova Iorque. (Foto de Ludovic Marin/AFP)

O tom tem subido. A União Europeia, embora de forma dissonante, levanta um pouquinho a voz, para dizer a Israel que assim não pode ser. Mas estas palavras de Bruxelas são inconsequentes.

Cemitério a céu aberto

Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, disse o que é preciso dizer: a Faixa de Gaza transformou-se num “cemitério a céu aberto” (Gaza era habitualmente referida como uma prisão a céu aberto) e “a fome é utilizada como arma de guerra”. A ONU também admite que os obstáculos levantados por Israel à entrada de ajuda na Faixa de Gaza podem constituir crimes de guerra.

ONU e várias ONG não se cansam de sublinhar a urgência em fazer chegar ajuda a Gaza e a Amnistia Internacional alerta que os mais de dois milhões de palestinianos em Gaza vivem em situação de catástrofe e não vão conseguir resistir apenas com a ajuda que chega por via aérea e marítima.

Até os Estados unidos admitem que situação está no limite e o secretário de Estado Antony Blinken disse que “cem por cento da população está numa situação de insegurança alimentar grave”, acrescentando que “é a primeira vez que uma população inteira é classificada desta forma”. Se dúvidas houvesse elas terminam quando é o principal aliado de Israel a admitir a catástrofe.

Seguidismo acrítico

Enquanto a terrível situação de Gaza ameaça não ter fim à vista, a União Europeia e os Estados Unidos parecem brincar às sanções. Para dar a ilusão de que algo de concreto está a ser feito, anunciam sanções contra alguns colonos israelitas mas isso é como “fazer cócegas” a Telavive. Ora, como sabemos, quem sente cócegas, normalmente ri-se. É isso que faz Benjamin Netanyahu quando ouve falar de sanções europeias ou norte-americanas. Por muito menos a União Europeia e os Estados Unidos impõem sanções a quem bem entendem, mas contra Israel e em defesa dos palestinianos só têm algumas palavras fortes e uma mão cheia de nada. Se a atitude dos Estados Unidos não surpreende, Bruxelas parece, cada vez mais, uma delegação europeia de Washington. Poucos terão dúvidas de que se, eventualmente, os Estados Unidos decidirem aplicar outro tipo de sanções a Israel, a União Europeia seguir-lhe-á os passos. É sempre assim. O seguidismo acrítico europeu é uma atitude a que alguém já chamou de “Atlantismo Beato”, alimentado pela escola de política internacional norte-americana e pelas influências que Washington mantém na Europa em instituições como Universidades e Fundações.

Enquanto Gaza arde

Enquanto Gaza arde, no discurso político nunca faltam referências à “maior democracia do Médio Oriente” (Israel). Enquanto Gaza arde, dirigentes da União Europeia foram ao Egipto, ali mesmo ao lado, assinar acordos com um outro “democrata” do Médio Oriente que chegou ao poder através de um golpe de Estado.

O Acordo de parceria estratégica com o Egipto significa 7 400 milhões de euros, entre empréstimos, investimentos e ajudas, até final de 2027. Abrange várias áreas, mas aquela que constitui o principal objetivo da União Europeia é a das migrações. Não por acaso, o chanceler austríaco agradeceu ao Presidente egípcio, Abdel Fatah Al Sissi, pelo esforço de acolher refugiados e por garantir que “nenhum barco de contrabandistas de migrantes irregulares tenha deixado as costas egípcias desde 2016”. Afinal, nunca se sabe como vai terminar a guerra em Gaza e se daí poderá resultar uma vaga de refugiados que possam, depois do Egipto, querer ter a Europa como destino.

A este apoio europeu ao Egipto juntam-se 35 mil milhões de dólares dos Emirados Árabes Unidos e mais 5 mil milhões de dólares em empréstimos adicionais do FMI. Estamos mesmo a ver quem coordenou todas estas ajudas num momento em que o Egipto atravessa a pior crise económica da sua história. Ou não fosse o Egipto um velho e forte aliado dos interesses norte-americanos na região. Uma ajuda necessária e urgente não vá a Praça Tahrir assistir a uma nova Primavera Árabe que viesse baralhar os interesses estratégicos.

Ursula von der Leyen e abdel Fatah Al Sissi, Cairo, 18 de Março de 2024. Foto no Twitter de von der Leyen.

Entre sorrisos ao lado de Al Sissi e fotografias no Twitter, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, escreveu: “Seis dirigentes europeus encontram-se hoje no Cairo. Isto mostra como valorizamos profundamente a nossa parceria com o Egito”. A Human Rights Watch não perdeu tempo a alertar: “O padrão é o mesmo dos acordos falhados da União Europeia com a Tunísia e a Mauritânia: prender os imigrantes, ignorar os abusos”. Tarefa confiada a um “democrata”.

Enquanto a União Europeia não se libertar da tutela dos Estados Unidos e enquanto não ganhar vida própria na política internacional, principalmente na relação com a vizinhança próxima, vamos ver os Estados Unidos a beneficiarem dessa política e a União Europeia a pagar a factura. A situação na Faixa de Gaza poderia ser um momento de afirmação de uma União Europeia livre da tutela dos Estados Unidos, mas para isso seria necessário dirigentes à altura e eles neste momento não existem. Borrell, de quem fiz citações no início deste texto, parece estar sozinho. O posicionamento da União Europeia face aos Estados Unidos e a conflitos que influenciam directamente a vida dos europeus terão de ser assuntos obrigatórios na campanha eleitoral que aí vem. Daqui por três meses veremos o que nos dizem os resultados das eleições europeias.

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