Rue de Bassano

42 Rue de Bassano, Paris 8

Paris tem ruas cheias de memórias. Muitas delas são más memórias, do tempo em que a França esteve ocupada pelos nazis. Mas também há memórias diferentes como, por exemplo, a placa com o nome de Augusto Manoel (assim, com “O”) Alves da Veiga (1849-1924), jornalista, político republicano e diplomata português. “Chefe civil da Revolução Republicana de 31 de Janeiro de 1891”, assim é descrito na placa da Rue de Bassano, no 16º bairro de Paris. Foi um dos líderes da Revolução e leu, nas varandas da Câmara Municipal do Porto, a proclamação do novo governo. Como sabemos, a Revolução falhou e Augusto Manoel Alves da Veiga exilou-se em Paris, apenas regressando a Portugal após a implantação da República mas mantendo a casa em Paris.

Foto de Augusto Manuel Alves da Veiga, em 1882, na Revista Galeria Republicana; e placa na casa onde viveu, em Paris.

Por dever de ofício, a Rue de Bassano, no 8º bairro, faz parte da minha rotina diária e foi a partir de uma varanda nesta rua que um dos lugares mais tenebrosos de Paris – e foram muitos – se apresentou à minha frente. A placa na parede em frente fixa essa má memória: “Em homenagem aos resistentes torturados nesta casa durante a ocupação 1940-1944”. Ocupação nazi. Este foi um lugar da Gestapo. Sabemos todos – ou talvez não – o que a Gestapo fazia. As pessoas que torturou e matou. O diabo em estado puro andou à solta na Europa e deixou marcas que não devem ser esquecidas ou apagadas. Aliás, Paris é chão onde com frequência o imaginário recupera o som e a imagem das botas nazis a marcharem em território ocupado. Não vivi esse tempo, mas há documentação que chegue para podermos imaginar como seriam as avenidas de Paris ocupadas pelo III Reich e as suásticas nazis hasteadas na capital francesa.

A II Guerra Mundial foi o epílogo de um caminho que arrastou quem pensava que a culpa era do “outro” (judeu, comunista, cigano…) e que a violência e o genocídio seriam a solução. Tal como hoje, quando muitos não querem acreditar que há uma bomba ao retardador (a pobreza e a discriminação – de toda a ordem: étnica, económica, social…), houve nesse tempo quem não acreditasse no que os nazis estavam a fazer nos campos de extermínio. O nazismo foi algo terrível, mas ainda assim encontrou colaboradores por onde foi passando. É assim em todas as tragédias: há resistentes, há colaboradores e há quem não queira ver. E hoje, é isso que mais assusta: haver quem defenda a violência e a guerra como único recurso para resolver conflitos, de caracter geopolítico, mas principalmente de ordem social e económica; há quem defenda a repressão e a guerra, recusando aprofundar a discussão sobre a origem dos problemas. “Só a análise empírica e racional exaustiva das causas permite encontrar o caminho de saída para o conflito”, escreveu Viriato Soromenho Marques no Diário de Notícias.

A nossa história, a história do Mundo é feita de migrações. O “Ocidente” não é um lugar, é uma ideia, e tem mudado ao longo do tempo (“O Domínio do Ocidente” de Ian Morris, explica isso muito bem). Já houve “ocidentais” que deixaram de o ser. São agora migrantes que viajaram para o actual “Ocidente” e para os quais, alguns, no actual “Ocidente”, olham de esguelha e repudiam.

Se alguns norte-americanos trataram os índios à bala e colocaram-nos em “reservas”, com uma lógica não muito longe daquela com que os governos israelitas têm tentado tratar os palestinianos, muitos povos europeus (apesar dos crimes que cometeram nos territórios que ocuparam noutros continentes) tiveram a possibilidade de construir uma relação que devia ser suficiente para perceberem que um ser humano é apenas isso, seja qual for a origem, cor de pele ou religião. A Europa viveu vários períodos migratórios e, dependendo do que vier a acontecer na Ucrânia, pode ter de enfrentar uma nova e grande onda migrações. Mas, no caso europeu, a relação entre colonizador e colonizado, apesar dos saudosistas dos impérios, fez caminho para uma relação entre iguais. É por isso difícil de entender o crescimento do racismo, da xenofobia e do fascismo, já nada encoberto, através dos apelos à vinda de um qualquer homem providencial que trará ordem e progresso.

Parece que foi há muito tempo, mas não foi. Parece que é passado, mas os ovos da serpente estão por aí.

Por isso gosto desta Rua de Bassano, que se estende por dois bairros de Paris, lugar onde se mantém a memória. Quem passar, se não for a olhar para o telemóvel, fica a saber que por ali passou o Holocausto e a grande destruição da Europa. Paris, e a França, um pouco por todo o lado, mantêm essa memória. Uma memória que não parece suficiente para evitar o ressurgir de discursos de ódio que nos podem atirar, de novo, para o abismo.

Deixe um comentário