
Estamos nisto: mais de dois milhões de pessoas estão sujeitas a todo o tipo de bombardeamentos, cercadas, sem escapatória, sem água, electricidade, combustível, cuidados médicos e… sem alimentos. Tudo o que é indispensável à sobrevivência de mais de dois milhões de pessoas está disponível, mas entra em Gaza a conta-gotas, porque é assim que Israel acha que deve ser.
Fanatismo
Israel é, neste momento, um país com um governo dominado pela extrema-direita religiosa e colonos fanáticos, e com um Primeiro-ministro refém da guerra porque quando ela terminar termina também a vida política de Benjamin Netanyahu. Este governo tem revelado duas competências principais: tem um excelente serviço de propaganda e é extremamente eficiente a matar palestinianos.
Propaganda
Quanto ao serviço de propaganda, faz inveja a qualquer país porque é único e eficiente. É perito em distorcer/moldar a realidade e utiliza uma semântica que disfarça essa distorção, revertendo a percepção da realidade em favor dos objetivos de sempre: a inacção da chamada comunidade internacional perante a expansão do território, a criação de colonatos, o cerco de Jerusalém (por um anel de colonatos), em resumo, a construção, passo a passo, do grande Israel, ao arrepio do Direito Internacional. Tem sido assim com todos os Governos de Israel desde há muito tempo, mas muito vincadamente com o actual governo. Uns de forma mais declarada, outros de forma mais ligeira, todos os anteriores governos mantiveram a política de expansão do território e dos colonatos, empurrando os palestinianos da Cisjordânia para pequenos guetos controlados por postos de controlo e diariamente sujeitos a incursões dos militares israelitas, sendo que a Autoridade Palestiniana não tem poder e é vista como uma autoridade administrativa ao serviço de Israel. A eficiência da propaganda israelita, com a qual todos os governos poderiam aprender, tem sido ainda mais evidente depois do 7 de Outubro: presença de dignitários estrangeiros, manifestações de apoio a Israel, todos os discursos e declarações dos responsáveis políticos israelitas, divulgação de fotografias e vídeos dos túneis de Gaza e do armamento apreendido, tudo isto replicado por um exército que tem por campo de batalha as redes sociais, difundindo à exaustão tudo o que é produzido pela máquina de propaganda israelita. Já o disse e repito: Israel é extremamente competente nesta matéria. Há um “pequeno” problema: se passarmos a propaganda no crivo da realidade, o chumbo é estrondoso. Foi assim com os bebés alegadamente decapitados a 7 de Outubro e, agora, um mês depois, ainda não vimos as tais provas do envolvimento de funcionários da UNRWA no referido ataque. Foi assim também com as muitas imagens divulgadas sobre hospitais alegadamente utilizados como centros de comando do Hamas. Imagens, muitas, mas nada provam. Um dia destes poderá aparecer outra acusação qualquer que sirva de argumento ao que Israel está a fazer em Gaza, fará o seu percurso na comunicação social e depois será esquecida sem nunca ter sido provada, tendo produzido o efeito desejado.
Eficiência
Quanto a ser eficiente a matar palestinianos, os números traduzem essa capacidade: desde 7 de Outubro, 30.300 mortos, cerca de 70.000 feridos e um número indeterminado de vítimas sob os escombros em Gaza. E ainda as centenas de mortos na Cisjordânia. Estas pessoas morreram porque foram atingidas pelos bombardeamentos ou pelos tiros dos militares israelitas e porque não tiveram cuidados médicos quando ficaram feridas ou doentes. Agora, é a fome que espreita. A Organização Mundial de Saúde, o Programa Alimentar Mundial (PAM) e a ONU há muito que denunciam os índices de malnutrição. Um quarto da população de Gaza está já à sofrer a fome e 15% das crianças com menos de dois anos sofrem de malnutrição aguda. O PAM refere que é o pior nível de malnutrição infantil a nível mundial.

Recusar acesso a alimentos
Perante este cenário e depois dos terríveis momentos a 29 de fevereiro aquando da chegada de camiões com alimentos ao sul da cidade de Gaza, Israel teima em travar a entrada de ajuda humanitária, seja a que é canalizada através do Egipto (sul da Faixa de Gaza), seja a que chega ao porto de Ashdod (a norte da Faixa de Gaza). A ajuda existe, está nas fronteiras de Gaza, mas Israel bloqueia a passagem. O argumento é o de sempre e serve para tudo: é preciso verificar cada camião e cada caixa de alimentos, em nome da segurança de Israel. Não importa que as pessoas morram de fome. Nos últimos dias, Estados Unidos, Jordânia e França, colaboraram na largada de alimentos através de para-quedas. Os palestinianos estão ser alimentados quais animais dentro de uma cerca para o interior da qual são atirados alimentos que eles, famintos, disputam, sofrendo essa humilhação acrescida de terem de se bater por uma “côdea de pão” de modo a não morrerem de fome. Esta situação em Gaza, em que quem não morre de uma bala ou de uma bomba, arrisca-se a morrer de fome, não é nada de que alguém (humano) se possa orgulhar, mas pelos vistos serve as intenções de Israel e a promessa feita de que os palestinianos, após o 7 de Outubro, iriam ser tratados como animais.
Inadmissível
Este texto tem como exclusiva ambição a defesa dos Direitos Humanos. Não é contra israelitas ou judeus. É contra os decisores políticos israelitas porque não podem recusar responsabilidade sobre o que está a acontecer em Gaza. É inadmissível, escandaloso, criminoso, que em pleno século XXI alguém possa morrer de fome porque outro alguém lhe recusa o acesso à alimentação disponível. Nunca foi tão urgente que a população de Gaza possa receber alimentos e assistência médica. É o mínimo, para permitir a sobrevivência e alimentar alguma esperança no futuro.
