
As imagens que chegam da Faixa de Gaza são absolutamente terríveis. É difícil encontrar palavras para descrever o crime bárbaro de matar pessoas que apenas queriam chegar a alimentos para poderem matar a fome. Começa a ser difícil ultrapassar tanta desumanidade. Israel está a cumprir a promessa feita logo após o 7 de Outubro: está a tratar os palestinianos como animais! Aliás, pior do que isso. Os palestinianos de Gaza que ainda não morreram, vítimas de uma bomba ou de um tiro, estão condenados a morrer de fome ou da falta de cuidados de saúde. E se não morrem de fome, matam-nos quando tentam obter alimentos.
A escolha das palavras é importante. Pelo menos 110 pessoas foram assassinadas e mais de 700 ficaram feridas (AFP cita fontes do Hamas) quando tentavam obter alimentos que estavam a chegar, em camiões, a uma zona a sul da cidade de Gaza. O exército israelita assume ter morto algumas destas pessoas e justifica a utilização de armas letais contra civis desarmados com o receio sentido pelos militares israelitas no terreno. Diz Israel que a maioria das vítimas morreu atropelada no caos que se gerou quando os camiões se aproximaram do local de distribuição dos alimentos. As testemunhas e alguns dos feridos desmentem esta versão. As próprias imagens que Israel se apressou a divulgar não mostram nenhuma prova que certifique essa versão.
Mas, ainda que pudesse ser verdade, ao impedir a entrada de ajuda humanitária em Gaza, Israel criou uma situação em que pessoas famintas se digladiam por um saco de farinha ou por qualquer outra coisa que lhes mate a fome. Mesmo que estas pessoas tivessem morrido por se atropelarem umas às outras, a responsabilidade é toda e inteira de Israel.
Impunidade
Depois de “mais um dia de inferno” como foi descrito pela UNRWA, o Ministro da Segurança Nacional do governo de Israel, Itamar Ben-Gvir (líder do partido de extrema-direita Força Judaica) escreveu isto no X (Twitter): “Deve ser dado apoio total aos nossos heroicos combatentes que operam em Gaza, que agiram de forma excelente contra uma multidão de Gaza que tentou prejudicá-los. Hoje ficou provado que a transferência de ajuda humanitária para Gaza não é apenas uma loucura enquanto os nossos reféns estão detidos em Gaza em condições precárias, mas também põe em perigo os soldados das FDI (Forças de Defesa de Israel). Esta é outra razão clara pela qual devemos parar de transferir esta ajuda, que é na verdade uma ajuda para prejudicar os soldados das FDI e oxigénio para o Hamas” (Tradução X/Twitter). Temos assim um ministro de um país sempre aclamado como grande democracia que acha muito bem que os soldados tenham disparado contra palestinianos famintos e desarmados e ainda pretende que deixe de entrar em Gaza qualquer ajuda humanitária. Se isto é um homem, a condição humana pode atingir um nível muito reles.
Quem não acreditava no Hamas talvez acredite nos Estados Unidos
Hoje ouvimos também o Departamento de Estado norte-americano dizer que já foram mortas em Gaza 25.000 mulheres e crianças. Os que duvidavam dos números da tragédia que as autoridades de Gaza têm vindo a revelar, talvez agora acreditem, uma vez que a fonte da informação está em Washington. Desde 7 de Outubro, e de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, mais de 30.000 palestinianos foram mortos e 70.000 ficaram feridos. Além disso, pelo menos 7.000 pessoas estão desaparecidas, presumivelmente mortas sob os escombros.
Piruetas diplomáticas
Perante a catástrofe de Gaza, que ninguém pode dizer que desconhece, continuamos sem ver da parte dos países ocidentais uma única acção política que sinalize a Israel que não pode continuar a matar impunemente. Como exemplo, poucas horas depois do que aconteceu em Gaza, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, em declarações á imprensa lembrou que a França defende desde há muito um cessar-fogo “para que as populações civis deixem de pagar pelos crimes do Hamas”. Acrescentou que a França sempre condenou os ataques a civis e infraestruturas civis durante as operações militares.
Depois, uma pergunta directa: “Acaba de nos dizer que a França se esforça por fazer tudo para que os civis de Gaza deixem de pagar pelos crimes do Hamas. Não se trata mais dos crimes de Israel?”. A resposta não foi directa: “Temos condenado as diversas violações do direito humanitário internacional e somos exigentes com Israel neste ponto”. O Incómodo foi de tal ordem que algumas horas após a conferência de imprensa o Quay d’Orsay emitiu um comunicado dizendo que “é responsabilidade de Israel cumprir as regras do direito internacional e proteger a distribuição de ajuda humanitária às populações civis”. Já passava da meia-noite quando o próprio Presidente Emmanuel Macron, na rede social X, veio expressar “profunda indignação com as imagens que nos chegam de Gaza, onde civis foram alvo de soldados israelitas. Manifesto a minha mais veemente desaprovação relativamente a estes disparos e exijo verdade, justiça e respeito pelo direito internacional”.
Se verificarmos as declarações do Ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, também no X, parecem tiradas a papel químico: “Profundamente chocado com a morte em Gaza de mais de 100 pessoas enquanto esperavam para receber ajuda. Os civis e as operações humanitárias devem estar seguros ao abrigo do Direito Internacional Humanitário”. Cravinho reforçou o apelo a “um cessar-fogo urgente e imediato e ao acesso seguro à ajuda humanitária, em conformidade com as medidas provisórias do Tribunal Internacional de Justiça”.
Como se pode ver, a palavra crime para classificar algumas acções de Israel em Gaza é algo aparentemente proibido. São apenas dois exemplos, mas são raros os casos de governos ocidentais que se atrevem a confrontar Israel com o que está a fazer na Faixa de Gaza.
