
FACTOS – Israel acusa vários funcionários da UNRWA (Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos) de terem participado no ataque do Hamas a 7 de Outubro. Os Estados Unidos dizem que são 12 funcionários. O chefe da UNRWA, Philippe Lazzarini, disse que recebeu informações de Israel sobre o alegado envolvimento de alguns funcionários no ataque de 7 de Outubro, acrescentou que rescindiu o contrato com esses funcionários – “para proteger a capacidade da agência de fornecer ajuda humanitária” – e abriu uma investigação para apurar a verdade. O Ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, Israel Katz, disse que a UNWRA não tem futuro na Faixa de Gaza e que não fará parte da solução pós-guerra. Entretanto, sem que a verdade tivesse sido apurada, vários países (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Itália, Austrália, Finlândia, Alemanha…) suspenderam temporariamente o apoio à UNRWA. Portugal e Espanha portaram-se bem: distinguem a organização daquilo que alguns dos seus funcionários poderão ter feito e até aumentaram a contribuição para a UNRWA.
O Hamas pede à ONU e às organizações internacionais para não cederem “às ameaças e chantagem” e acusa Israel de pretender privar os palestinianos de Gaza de toda a ajuda internacional. A Autoridade Palestiniana apelou aos países que suspenderam o apoio à UNRWA para que “revertam imediatamente a decisão” porque a UNRWA “precisa de apoio máximo” e não que lhe cortem o apoio e assistência.
CONTEXTO – As relações entre Israel e a UNRWA, que há muito tempo não são nada boas, agravaram-se há poucos dias, quando a ONU acusou Israel de ter atacado refúgios da organização com dois tanques de guerra no sul da Faixa de Gaza. A ONU diz que morreram 13 pessoas, 56 ficaram feridas, 21 em estado grave. Muitas instalações da ONU em Gaza – e na Cisjordânia – têm sido atacadas e dezenas de funcionários da organização foram mortos desde o início desta guerra.
A acusação de Israel a funcionários da UNRWA surge logo depois do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ter determinado que Israel tem de evitar actos na Faixa de Gaza que possam ser considerados como genocídio e deve também punir o incitamento ao ódio e ao genocídio; o TIJ considera ainda que “Israel deve tomar medidas imediatas e eficazes para permitir a prestação de serviços básicos urgentemente necessários e assistência humanitária para enfrentar as condições adversas de vida enfrentadas pelos palestinianos na Faixa de Gaza”. O pedido da África do Sul – que promove o processo no TIJ – para um cessar-fogo não foi acolhida porque o TIJ não pode produzir decisões que envolvam entidades (o Hamas) que não sejam Estados.
ENQUADRAMENTO 1 – Certamente não será uma coincidência a decisão do TIJ e esta acusação que Israel faz a funcionários da UNRWA, tentando com isso atingir toda a organização e o trabalho que desenvolve há décadas nos territórios palestinianos ocupados e em campos de refugiados palestinianos noutros países. Parece óbvio que Israel pretende retirar atenção à decisão do Tribunal e colocar o foco (e o ónus) numa agência que apoia os palestinianos. Alguns dos países aliados habituais de Israel não perderam a oportunidade suspendendo os apoios à UNRWA, uma agência que apoia quase 6 milhões de refugiados. Philippe Lazzarini, chefe da UNRWA, disse que ficou chocado perante a decisão dos países doadores perante uma acusação a um reduzido número de funcionários da UNRWA da qual depende a sobrevivência de dois milhões de pessoas.
Parece também óbvio que, apesar de todas as dificuldades, das instalações destruídas e dos mais de 140 funcionários mortos nesta guerra, a UNRWA é a única réstia de esperança para os palestinianos que tentam sobreviver em Gaza. Não havendo UNRWA, como pretende o MNE israelita, nada resta, apenas a fome e a doença e, muito provavelmente, uma tentativa de fuga desesperada para o Egipto.
O que é surpreendente são as reacções tão rápidas e ferozes de vários países perante o que é, por agora, apenas uma acusação. Reacções que são também uma punição colectiva, à UNRWA – por uma eventual acção de um pequeno grupo de funcionários (terão sido 12 num universo de 13.000 na Faixa de Gaza) – e a todos os palestinianos de Gaza e de outros campos de refugiados em vários países. É ainda mais surpreendente que nenhum dos países que suspenderam as contribuições para a UNRWA tenha decidido alguma medida contra Israel perante a acusação, muito mais grave, de genocídio, no TIJ. É certo que também neste caso é apenas uma acusação que o Tribunal há de julgar, mas não há forma de esconder a dualidade de critérios consoante o acusado: se a acusação visa ou está ligada aos palestinianos, tem retaliação imediata; se visa Israel, espera-se pela decisão do Tribunal.
Mas a lista pode continuar: hospitais, escolas, mesquitas, abrigos da ONU, em todo o lado Israel detectou “actividade terrorista” para justificar bombardeamentos e outro tipo de ataques enquanto os governos ocidentais emitiam comoventes declarações a pedir cuidado com as vidas civis. Há soldados israelitas a publicarem vídeos nas redes sociais humilhando palestinianos e até locais de culto muçulmanos. Há notícias de 30 corpos encontrados sob um monte de escombros no norte da Faixa de Gaza com fitas de plástico nas mãos e nas pernas e com os olhos vendados. Há imagens registadas pelas câmaras de um hospital em Jenin onde forças especiais israelitas disfarçadas com roupas árabes entraram para matar três palestinianos hospitalizados. Diz Israel que faziam parte de uma célula do Hamas e que estariam a preparar um ataque semelhante ao de 7 de Outubro. Tudo isto é grave, mas nada parece ser suficientemente grave quando a responsabilidade é de Israel e nenhum dos países que agora suspendeu os apoios à UNRWA se atreve a fazer alguma coisa. Contra os palestinianos é mais fácil.
ENQUADRAMENTO 2 – Cerca de 13.000 funcionários da UNRWA na Faixa de Gaza significa que a agência procura empregar o maior número possível de palestinianos como forma de se aproximar da população e também para combater o desemprego. Gaza é um território de 360 km quadrados, isolado do mundo, onde as dificuldades aproximam os palestinianos e Israel é visto como o causador da grande desgraça que os atinge, desde a Nakba (Catástrofe) e a criação do Estado de Israel, passando pelas sucessivas guerras e cerco do território desde 2006. Já sabemos que os Kibutz atacados pelo Hamas nas proximidades de Gaza estão no mesmo local onde existiam aldeias palestinianas de onde os palestinianos foram expulsos e atirados para campos de refugiados em Gaza.
Com a estrutura política e social de Gaza e com a influência que o Hamas tem no território, seria ingénuo pensar que nenhum dos 13.000 funcionários da UNRWA teria ligações ao Hamas ou familiares com esse tipo de ligação. Ter participado ou não no ataque de 7 de Outubro já será outra coisa. De qualquer forma ainda não são conhecidas as provas que Israel diz ter dessa alegada participação nos ataques. Já houve outras acusações feitas por Israel das quais nunca chegámos a ver provas e entretanto foram esquecidas depois de fazerem o seu percurso na comunicação social e alimentarem o estigma com que Israel procura carimbar o inimigo.
Para trabalhar em Gaza e fazer o que é mais importante – alimentar, educar e proporcionar cuidados médicos a quase dois milhões de refugiados – a UNRWA tem de fazer algumas cedências. Impõe mas também cede, porque tem de atender à realidade local em termos culturais, sociais e religiosos. É apenas uma adaptação indispensável e é assim que as organizações humanitárias que trabalham em zonas de conflito actuam. Pretender que a UNRWA está ao serviço do Hamas ou é cúmplice no ataque de 7 de Outubro parece apenas um absurdo.
Se a UNRWA acabar…
Apesar das muitas análises e comentários que grassam na comunicação social, foi um médico, Nelson Olim (especialista em medicina humanitária), na RTP, a dizer o que importa: a existência da UNRWA sempre foi uma pedra no sapato de Israel porque garante o estatuto de refugiado e isso abarca os direitos de retorno e de ser refugiado. Para além de todas as cortinas de fumo, é esta a grande questão.
A dedução é simples: se a UNRWA acabar, “acabam” os refugiados palestinianos, “acaba” o direito de retorno, Israel fica com um enorme problema resolvido. É uma questão política? É! Também por isso, parece óbvio que a intenção de atingir a UNRWA é não apenas atingir os palestinianos em Gaza e na Cisjordânia mas também em países como o Líbano, Síria e Jordânia, onde há muitos palestinianos (em campos de refugiados) que sonham num regresso aos locais de onde foram expulsos.
E há ainda um último objetivo: atingir a ONU no seu todo. Basta lembrarmo-nos das reacções israelitas quando António Guterres disse que o ataque de 7 de Outubro não tinha caído do céu. Ainda se lembram?

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